Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Páginas de sabedoria originária em debate no CCBB RJ

Márcia Kambeba, escritora | Foto: Divulgação

Saberes da floresta e alquimias silvestres entre verbos e advérbios, com raízes no predicado da literatura brasileira de autoria indígena, encarnam em dois sujeitos de força poética e destreza política no papo deste mês do Clube de Leitura do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, nesta quarta, às 17h30. É dia de o CCBB-RJ ouvir a amazonense Márcia Kambeba - autora de "Cocar", "Saberes da Floresta" e "O Curumim Wirá e os Encantados" - e o paraense Daniel Munduruku - autor de "Como Surgiu: Mitos Indígenas Brasileiros", "O Karaíba: Uma História do Pré-Brasil" e "A Primeira Estrela que Vejo é a Estrela do meu Desejo". Continua na página seguinte

 

Márcia Kambeba e Daniel Munduruku: Debate sobre a memória no centro do território cultural

Daniel Munduruku, escritor | Foto: Divulgação

Mais do que falar sobre prosa e verso, a dupla se autores vai discutir o quanto memória é território no amalgama cultural dos povos originários do Brasil. O encontro conta com a mediação dos poetas Suzana Vargas e Ramon Nunes Mello. No papo a seguir, Márcia e Daniel festejam o papel demiúrgico da palavra tanto na forma falada quanto na escrita.

Qual é o lugar poético da palavra e da escrita nos saberes indígenas?

MÁRCIA KAMBEBA: É o território do encantamento, da memória e da ancestralidade. A palavra, antes de ser escrita, é viva: nasce do sopro, do canto, do silêncio, da escuta. Ela carrega o peso do tempo circular, onde o passado, o presente e o futuro caminham juntos como trilhas na floresta. Cada palavra dita por uma anciã ou um pajé é um gesto de cura, é um mapa do mundo e da alma, é reza, é ensinamento. Nos saberes indígenas, a palavra tem corpo. Ela dança nos rituais, desenha-se nos grafismos, ecoa nas narrativas ao redor do fogo e percorre os rios da oralidade com a força de um remo que conduz a canoa do conhecimento. A escrita, por sua vez, quando acolhida, não é para substituir a oralidade, mas para proteger e fortalecer os cantos, os nomes sagrados, as histórias de criação, as memórias de luta e de vida. O lugar poético da palavra e da escrita, portanto, é esse espaço de encontro entre o visível e o invisível, entre o humano e o não humano, entre o que se fala e o que se cala. É a ponte entre o que se vive e o que se guarda no coração. Ela não é apenas meio de comunicação, mas forma de existência e resistência. Ao escrever, o indígena não apenas registra. Ele evoca, invoca, investe de sentido o mundo e refaz o caminho do pertencimento. Assim, a palavra e a escrita, quando alinhadas aos saberes originários, não são ferramentas, são sementes. Cada uma, ao ser partilhada, pode brotar como floresta.

DANIEL MUNDURUKU: O povo indígena é de tradição oral. Todo o sistema pedagógico parte da palavra para ecoar na mente, no corpo e no espírito das crianças. Isso tem a ver com os pequenos ensinamentos diários transmitido pelos pais, pelo exemplo na execução das atividades diárias e pela escuta atenta das histórias narradas ao final do dia. Treinam-se os sentidos para que o corpo esteja sempre em vigilância; treinam-se os corpos para que saibam sobreviver e enfrentar os desafios. Treina-se o espírito fortalecendo-o através das histórias. A palavra escrita é uma ressignificação da palavra falada. Entendemos que ela é importante nos dias atuais porque somos contemporâneos e precisamos aprender os códigos ocidentais.

Que espaços a literatura indígena galga hoje?

MÁRCIA KAMBEBA: A literatura indígena anda pela cultura literária, por mercados editoriais, por feiras de livros e por festivais internacionais literários. Está nas premiações literárias, nas escolas indígenas e não indígenas, nas universidades nacionais e internacionais, nas bienais de literatura, nas mídias digitais e redes sociais. Está nos prêmios literários de reconhecimento público, nos projetos comunitários e no fortalecimento das línguas indígenas quando os livros são escritos bilíngues (língua indígena e português) ou trilíngues (quando trazem uma outra língua, como espanhol ou ingles), está no teatro, música e adaptações audiovisuais, ela está na ABL (a Academia Brasileira de Literatura) e em outras Academias de Letras pelo Brasil, como na Academia Internacional de Literatura Brasileira, nos EUA, da qual sou membro também com outros indígenas juntos. Ela está em muitos espaços e ocupa hoje um mosaico de espaços revelando seu dinamismo, "pluriversidade" e forças para reescrever narrativas, fortalecendo a resistência, a memória e a História.

DANIEL MUNDURUKU: Ela é uma produção que começou há pouco menos de 40 anos e já ocupa um lugar de destaque por conta de sua originalidade, criatividade e pertencimento. Ela tem ocupado importante papel na ressignificação da identidade nacional e a vejo como uma feliz novidade para se repensar o papel dos povos indígenas na História brasileira.

Do que fala consciente e politicamente a tua obra?

MÁRCIA KAMBEBA: Minhas obras literárias falam do direito de existir com dignidade, como povo originário. Falam do corpo-território que resiste, do silêncio que grita, da memória que não se curva diante do memoricídio (extermínio da memória). Conscientemente, escrevo para costurar o que tentaram rasgar, destruir: a língua, a espiritualidade, a História, a memória, os saberes ancestrais. Politicamente, cada poema, conto, texto ou fala minha é uma afirmação de que a literatura indígena não é apenas estética: é estratégia de sobrevivência, de denúncia e de cura, do entendimento de que somos um corpo/espírito e precisamos nos fortalecer. Minha escrita realiza uma arqueologia dos saberes Omágua/Kambeba quando escava com cuidado e reverência as camadas profundas da memória do meu povo, trazendo à luz fragmentos, vozes e presença que o contato colonial tentou apagar ou destruir. Eu recolho esses pedaços de memória... essas histórias... como quem recolhe das profundezas da terra as cerâmicas milenares que também contam sobre nós. Transformo (esses pedaços) em palavra viva, em canto que reencanta, em memória que insiste em permanecer. Minha literatura é um corpo que carrega grafismos, é um cachimbo que acende a escuta dos encantados, é uma ponte entre mundos. É o sopro da ancestralidade que me atravessa e o legado que deixo para quem virá. Escrevo com a alma de quem não aceita o silêncio imposto, de quem denuncia a violência contra a natureza, contra o humano e não humano. Escrevo com a força de quem sabe que contar sua história é também retornar ao território do seu ser.

DANIEL MUNDURUKU: Costumo dizer que escrevo sobre o mesmo tema a partir de perspectivas diferentes. Passeio por todos os estilos literários e acadêmicos para conversar com os diversos públicos sempre abordando a temática indígena nas suas diferentes e possíveis leituras. Costumo pensar que fazer literatura é minha contribuição para a luta secular dos povos indígenas e isso acalma meu coração.

Que livros te fizeram amar a leitura? Que livro você indicaria a um parente?

MÁRCIA KAMBEBA: Os livros que me fizeram amar a leitura não foram apenas feitos de papel, mas de voz. A leitura começou em casa, com minha avó, Assunta, que me contava histórias entre rezas, benzeções e silêncios - e esses diziam mais do que muitas palavras. Foi ali que aprendi que leitura também é escuta do mundo, do outro, dos encantados. Depois vieram os livros impressos. Lembro de me emocionar com histórias que me atravessavam como se falassem de mim, mesmo quando não traziam rostos como o meu. E foi aí que entendi: eu precisava escrever o que ainda não estava nos livros. Precisava escrever para que crianças indígenas se vissem como protagonistas, para que os parentes se reconhecessem, para que os não indígenas aprendessem a escutar. Hoje, indicaria a um parente livros que não apenas informam, mas que fortalecem o espírito. Livros que são flecha e raiz. Indicaria obras de autores indígenas, como "Ideias para adiar o fim do mundo", de Ailton Krenak; "Metade cara, metade máscara", de Eliane Potiguara; "Meu avô Apolinário" e "Catando piolho contando histórias", de Daniel Munduruku; "A boca da Noite", de Cristino Wapichanalivros do Kaká Werá ou mesmo minhas próprias obras, que escrevo com o coração plantado na aldeia e os olhos atentos à luta do presente. Ler, para nós, não é passatempo. É retomada. É forma de recontar o mundo com nossas palavras, com nossa visão, com nosso tempo. Por isso, cada livro que indico a um parente é como oferecer um grafismo: uma forma de marcar o território da existência.

DANIEL MUNDURUKU: Por conta do histórico que me acompanha tive que ler muito para superar os demais colegas da cidade e para não abrir mão de minha ancestralidade. Li um pouco de tudo: de ficção clássica à angiologia; de didáticos à literatura juvenil; de filosofia à teologia. Enfim, li por obrigação, por diversão e por necessidade. Não me arrependo de nada disso, mas foi o que provocou meu talento para a escrita. Neste sentido - e sempre que posso - digo aos parentes que leiam o que quiserem ler, o que gostam e o que não gostam, porque isso os vai conduzir para a uma escolha cada vez mais consciente e cidadã.

De que maneira o tema da demarcação das terras indígenas inspira a literatura dos povos da floresta?

MÁRCIA KAMBEBA: A demarcação das terras indígenas não é apenas um tema político é, sobretudo, um tema de vida, de memória e de continuidade. Para os povos da floresta, a terra não é propriedade, ela é parente. É dela que nascem os cantos, os grafismos, os saberes e as histórias que atravessam gerações. Quando escrevemos, escrevemos com os pés fincados na terra que nos alimenta o corpo e a palavra. A literatura indígena se inspira nesse chão ancestral não como reivindicação jurídica apenas, mas como forma de lembrar que a terra tem espírito, tem nome, tem voz. A demarcação, nesse sentido, é também uma forma de proteger a memória viva do povo. Cada poema, cada conto, cada narrativa de um povo da floresta é uma forma de dizer "estamos aqui" não apenas no mapa, mas na "cosmovivência". É nesse campo que vejo a demarcação das terras indígenas inspirar a literatura indígena. A demarcação inspira a literatura porque é nela que a terra se faz verbo — ela canta, ela chora, ela alerta, ela ensina. E nós, como guardiões de suas palavras, escrevemos não só para denunciar o apagamento, mas para celebrar a permanência.

DANIEL MUNDURUKU: Existe uma luta de classes que reverbera em nossa sociedade. Muitas vezes se imagina que ela aconteça apenas no contexto urbano entre empresas e os trabalhadores delas. Essa luta acontece nos campos e nas terras indígenas. Quando escrevo, não esqueço dessa equação e ainda que o faça pensando em crianças pequenas, meus escritos ensinam a pertencer, cuidar, confluir. Isso reforça a ideia de que somos partes da natureza e não seus donos. Na medida em que a criança amadurece, essas ideias irão acompanhando-a e fazendo eco no jeito de ela interagir com o mundo à sua volta. Portanto, a semente está lançada e, penso, há de reverberar em todo o corpo da criança, do jovem e do adulto. Minha literatura é um cavalo de Tróia: ocupa a criança para atingir o adulto.