O leitor, por vezes, procura na ficção ecos da realidade que cerca os autores. Aparentemente, não há qualquer indicação de que Alba de Céspedes tenha se inspirado na história real de Leone e Natalia Ginzburg para compor "Na voz dela" (Companhia das Letras, R$ 99), um marco da literatura feminista italiana, lançado em 1952.
A protagonista, Alessandra, cujos anseios por uma vida significativa parecem mais ligados a um intenso romantismo do que à necessidade de ter uma profissão ou ocupação relevante social e pessoalmente, casa-se com um intelectual dedicado à luta antifascista - militância abraçada pelo jovem Ginzburg, que, em 1934, recusou-se a jurar fidelidade ao regime fascista, como outros treze professores de universidades estatais italianas. Centenas de professores fizeram o juramento.
No Brasil, Leone Ginzburg se resume a uma nota na biografia de Natalia, escritora que manteve o nome do marido, morto aos 35 anos, sob tortura na prisão. Também pode ser lembrado como pai do historiador Carlo e avô da também romancista Lisa. Natalia conheceu uma glória maior do que Leone, celebrada por histórias que transcendem as questões femininas de sua geração, tratando das transformações da Itália - e da humanidade - no pós-guerra.
A trajetória de Leone é relatada por Antonio Scurati em "A melhor época da nossa vida" (Mundaréu, R$ 78,90), no qual conta também a dificuldade de sobrevivência das famílias de seus avós durante o fascismo. O título vem da expressão de Natalia para se referir ao período em que viveu com Leone e os filhos no interior da Itália, em semiclandestinidade.
O casal de "Na voz dela" não tem filhos, dedica-se com ardor a combater o fascismo. A paixão move Alessandra, como a tantas mulheres que vivem casamentos sem amor, o que só conhecem através de casos extraconjugais vespertinos e constantes. Os homens são provedores medíocres das famílias empobrecidas por uma recessão que aumenta com o início da guerra. Depois que a mãe se suicida, incapaz de abandonar o marido e a filha pelo amante. Alessandra quer estudar, distanciar-se do tradicional destino de servidão doméstica. O intelectual Francesco surge como seu salvador romântico, porém, a devoção à política é maior do que ao casamento. Depois da prisão do marido, ela também se engaja na causa.
A rotina de violência contra as donas de casa na primeira metade do século XX é tratada superficialmente por Céspedes, cuja vivência, como filha de um embaixador, seria totalmente diferente de suas personagens. Ainda assim, ela descreve perfeitamente o patriarcalismo inerente aos homens, entre eles os mais libertários, como Francesco. É a Francesca que cabe cuidar da casa, enquanto estuda ou arranja um emprego para contribuir com a parca renda familiar. A opressão se impõe acima de maus tratos físicos. Os maridos provedores são desprezados por suas mulheres e filhos, porém têm direito inalienável a roupas limpas, refeições em horários pré-determinados e descanso ininterrupto quando entram em casa. A ausência de perspectiva existencial para a maioria dessas mulheres, ainda que pobres e dedicadas à faina doméstica, se canaliza para amores impossíveis, estimulados pela literatura e toda cultura relacionada ao feminino.
Com uma fulgurante carreira de escritora, editora e intelectual, Alba de Céspedes discorreu sobre a opressão feminina em outras obras, incluindo o belo "Caderno proibido" (Companhia das Letras, R$ 59), cuja protagonista também precisa trabalhar em escritório para ajudar no sustento da família, sem descuidar das tarefas domésticas. Em seu diário, observa os caminhos escolhidos pelos filhos, a vida monótona ao lado do marido, a possibilidade de um envolvimento adúltero com o chefe. A solidão é a principal companhia das mulheres de Céspedes, amargas como as donas de casa que durante as guerras desempenham - e vislumbram outra existência - as funções habitualmente cumpridas pelos homens, para, depois do fim dos conflitos, retomarem rotinas entediantes como rainhas do lar.