Se você viesse com filme da Marvel, papo de "Sessão de Tarde" ou citações das falas de Denzel Washington na franquia "O Protetor" para cima do Dau Bastos de uns 10 anos atrás, receberia, na lata, uma "passada de sabão", daquelas educadas, mas tão ricas de informação que soam como um colóquio - ainda que pontuado de sua ironia estrutural.
Autor de livros-delícia como "Snif" e "Das Trips, Coração", ele provavelmente evocaria o bamba da Estética da Recepção (o alemão Wolfgang Iser) e citaria a obra do crítico Luiz Costa Lima (de quem é fã), além de fazer referências a cânones da prosa nacional. Acontece que o Tempo - essa irretrocedível máquina de fazer monstros - aproximou esse professor da UFRJ (tesouro da Faculdade de Letras, lá do Fundão) de influências pop. Por ter dividido, faz pouco, um curso de Cinema e Literatura com nerds de carteirinha que unem Batman a Nietzsche, seu coração hoje está mais permeável aos planos-sequência do cinemão.
É neles que a gente pensa diante dos dez contos de "Difícil É Dormir", que Dau lança nesta terça, às 19h, na Livraria da Travessa de Botafogo. Ao radiografar metrópoles e cidades pequenas, ele transpira referências da Modernidade, criando uma fauna de Chaplins brasileiríssimos numa Comédia Humana com agilidade de Buster Keaton. Qual um trapezista sem rede, ele se lança num neo noir de vidas engasgadas, no qual a ambiguidade é o parâmetro da demasiada condição de estar sem norte na vida, gerando frases de galope, que trotam numa ligeireza hollywoodiana. No papo a seguir, Seu Adauri Bastos fala dessa escrita.
Que bússola estética dá norte a "Difícil é Dormir" na cabotagem da sua prosa?
Dau Bastos - Meu primeiro livro, "Das trips, coração", é um romance de capa colorida e intriga trepidante que, publicado em 1984, harmonizava-se à euforia da redemocratização e ao entusiasmo da juventude. Não tenho o que reclamar da vida, mas o próprio amadurecimento foi tornando minha visão de mundo menos esperançosa. Restou o consolo de perceber que a ficção se inclina a recriar o lado obscuro da existência. Em 2020, a combinação de pandemia e reedição do autoritarismo fez pensar em fundo do poço. Nascidos nesse contexto, os contos de "Difícil É Dormir" se irmanam pelo pessimismo e mesmo niilismo. Até as histórias escritas depois da grande crise e situadas em outras épocas trazem a marca do desespero e do desalento. Oxalá se mostrem à altura dessa verdadeira prova de fogo a que fomos submetidos.
A sua literatura, mais do que radiografa ambientes e tempos; esquadrinha personagens, mergulhando neles em busca de suas mais ínfimas angústias, como se vê no Jean-Marc do conto "Projeto Madá". O que os "heróis" de Difícil é dormir revelam da sua antropologia afetiva? De que maneira você desenha esses corpos com as palavras?
A ênfase na subjetividade decorre do velho reconhecimento de que a mente humana jamais superará a capacidade da realidade de oferecer eventos mirabolantes. Resulta, além disso, da percepção de que o desconcerto interior estimula a alforria do verbo e o adensamento do enredo. Naturalmente, importa colocar em pauta não façanhas, e sim fracassos. Assim se explica que Jean-Marc seja atraente, porém precise aprender com uma brasileira a tirar prazer do próprio corpo. Somatizadas, as emoções intensificam o intercâmbio com o mundo. Acrescente-se que as histórias da coletânea são movidas por sentimentos como carência, rancor e frustração, mas recorrente mesmo é a decrepitude - em possível indício do incômodo que começa a causar no autor, prestes a fazer 65 anos.
A Carina do conto "Poder aquisitivo" faz frente a Mingau, força motriz de seu belíssimo livro "Snif" (1987) - e maior personagem da toda a sua obra, até hoje - ao representar a potência feminina na sua plenitude. O que essas mulheres da sua literatura carregam das forças femininas que alumbraram a tua vida e a tua jornada como escritor?
Fui criado num ambiente bem machista onde, até para se defender, as mulheres precisavam ser valentes. Minha própria mãe sempre se destacou pela força, acrescida da generosidade de me apoiar mesmo quando não me entendia. Pode parecer simplista, mas encontro nessas sábias guerreiras explicação para meu apreço pelo empoderamento feminino. Carina, Mingau e demais mulheres que integram minha ficção surgiram naturalmente fortes. Não precisei fazer esforço algum para caracterizá-las dessa maneira. Agora, como se trata de literatura, não as idealizei. Em cada uma, a fibra se mistura humanamente a defeitos. Mingau, por exemplo, vez por outra se mostra maquiavélica e perversa. Quanto a Carina, nutre muitos preconceitos e não hesita em comprar os mais variados favores.
De que maneira a experiência do conto redesenha a sua voz e a sua gramática?
Sempre gostei de escrever romance. No entanto, durante a pandemia temi faltar fôlego para produzir uma narrativa longa. Asmático, cardíaco e hipocondríaco, realmente achei que duraria pouco. Então decidi produzir histórias curtas: a qualquer momento que morresse, deixaria textos que, mínimos que fossem, estariam prontos para serem publicados isoladamente ou em antologia. Só não previ o encanto de construir entrechos que precisam dizer a que vêm em poucas páginas. À necessidade de bolar universos muito diferentes entre si soma-se o desafio de variar o vocabulário, o ritmo, o ambiente e demais elementos, de modo que cada conto se configure um experimento distinto. Mal terminei "Difícil É Dormir", iniciei outro livro de contos, portanto não faço ideia de quando voltarei ao romance.