Pedagogo de formação e um dos pioneiros do movimento de cervejeiros caseiros no Rio de Janeiro, Tiago Dardeau é o que podemos chamar de entusiasta dos processos fermentativos, o que levou ao universo dos queijos. O mapeamento desenvolvido por ele evidencia a sofisticação crescente da produção artesanal brasileira, documentando as diferentes variedades de leite utilizadas - bovino, caprino, bubalino - e os diversos níveis de certificação alcançados pelos produtores.
Esta diversificação técnica demonstra como o setor evoluiu de uma atividade predominantemente familiar para um movimento nacional estruturado, capaz de competir em qualidade com tradições queijeiras centenárias de outros países.
"Todos os nossos queijos tradicionais já existiam, mas para a maioria dos brasileiros muitos continuam como ilustres desconhecidos - embora cada vez mais reconhecidos como ícones alimentares", aponta o jornalista Eduardo Girão, expert em queijos e autor do prefácio da obra.
"Queijarias Artesanais do Brasil" oferece uma contextualização histórica fundamental para compreender as raízes desta expansão. A análise de Dardeau resgata marcos decisivos que contribuíram para a atual visibilidade dos queijos artesanais brasileiros, desde as primeiras técnicas trazidas pelos colonizadores até as inovações desenvolvidas por produtores locais.
Na entrevista a seguir, Tiago Dardeau apresenta sua visão sobre este universo e todo seu potencial.
O que o motivou a empreender este mapeamento inédito de queijarias artesanais? E qual foi a metodologia utilizada para selecionar e catalogá-las?
Tiago Dardeau - Quem observa o movimento dos queijos artesanais brasileiros "de fora" já consegue perceber que há algo novo. Uma visibilidade e valorização que não existia alguns anos atrás, seja dos nossos queijos tradicionais ou das receitas inovadoras, se espalham por todo o país. Premiações internacionais, feiras gastronômicas, influência de chefs de cozinha famosos, presença nas redes sociais, cobertura das mídias tradicionais, roteiros turísticos e queijos diferentes daqueles já tão conhecidos de supermercado aparecendo em diferentes pontos de venda. Mas quem olha "de dentro", consegue ver mais. Com 10 anos de acompanhamento dessa cultura e desse movimento, posso afirmar que há uma revolução em curso, uma mudança de patamar no posicionamento de nossos queijos frente ao consumidor. Apresento um pouco sobre esses pontos no livro. Eu já tinha interesse em escrever sobre a cultura queijeira há um bom tempo. As ideias foram diversas, mas percebi que o caminho de apresentação de uma lista de queijarias poderia ser uma boa representação da nossa diversidade e crescimento. Como explico no livro, diante da vasta produção artesanal do país, não houve nenhuma pretensão de abarcar todas as queijarias existentes. Esta seria tarefa quase impossível. Também não gostaria de construir uma lista exclusivamente da minha seleção particular, muito menos intitular o trabalho como "as melhores queijarias do Brasil". Ou seja, a fim de apresentar uma lista diversificada e coletiva, acabei optando por incluir queijarias que já conheço pessoalmente, queijarias que já foram fornecedoras do meu clube de assinatura e outras que se apresentaram a partir de um formulário que divulguei em alguns grupos virtuais dos quais participo, convidando os produtores a preencherem as informações. Dessa maneira, a lista de queijarias apresentadas no livro é bastante diversificada, fruto de um trabalho colaborativo.
Qual é a importância econômica e social das queijarias artesanais para as comunidades rurais e a agricultura familiar e como você enxerga a evolução do setor - de uma atividade predominantemente familiar e regional para um movimento que ganha contorno nacional?
É importante frisar que o contorno nacional do movimento se dá, essencialmente, pela produção da agricultura familiar. As queijarias tradicionais, principalmente, se estruturam com o trabalho da família, leite próprio e poucos animais. Em minha pesquisa, com 213 queijarias apresentadas, temos uma média de 500kg de queijo/mês de produção. Ou seja, são milhares de pequenas propriedades que estão dando esse contorno nacional. Claro que já existem projetos maiores e com mais estrutura. Estes são fundamentais também para mostrar as possibilidades do artesanal e alavancar as vendas do setor. Sobre as questões econômicas, podemos dizer que o setor vem crescendo e trazendo impacto positivo para diversas comunidades. Porém, há desafios de toda ordem: da legislação, que ainda não atende plenamente o movimento artesanal, às questões logísticas, nesse país continental. Passando por dificuldade de mão de obra e falta de políticas públicas de incentivo à produção. A realidade é diversa, enquanto algumas regiões estão ampliando o número de queijarias e colhendo frutos diretos desse movimento, como é o caso de alguns municípios da Mantiqueira, há o inverso, queijarias fechando por dificuldades com a legislação ou problemas na sucessão familiar, caso que ocorre na Canastra atualmente. É preciso compreender que apesar de termos uma história queijeira de mais de 300 anos, o movimento de valorização, respeito e enquadramento legal dessa cultura está apenas nascendo. A visibilidade nacional dos queijos artesanais está posta, mas ainda é um nicho que precisa ser reconhecido por um público maior. O consumo dos queijos artesanais ainda está longe da potência que pode atingir.
Como você avalia a presença digital dos produtores artesanais? Essa modernização das estratégias de comunicação é um reflexo da crescente profissionalização do setor?
A presença digital e as estratégias de ação ainda são muito incipientes no universo queijeiro se observamos a partir da quantidade de queijarias que temos no país. Porém, já há um grupo bastante atuante tanto de queijarias, como de queijistas, que movimentam a cena digital e funcionam como difusores da cultura para além de seus próprios negócios. Essa profissionalização é inegável e está ganhando maturidade a cada dia no campo digital.
Houve alguma região ou tipo de produção que te surpreendeu ao longo deste trabalho? Das queijarias mapeadas, qual história ou perfil de produtor mais o impressionou?
O que me surpreendeu foi o conjunto, a diversidade de queijos e de histórias que temos quando olhamos todo o grupo. Desde produções clássicas e tradicionais dos queijos mineiros, passando por receitas com influência direta de imigrantes no sul, e a potência dos queijos de resistência do norte/nordeste. Sem contar as inúmeras iniciativas contemporâneas com receitas autorais e fantásticas. Fiquei muito impactado com uma característica comum em muitas delas: a resiliência. São diversas famílias que passaram (algumas ainda passam) por diferentes desafios e dificuldades. Algumas, verdadeiras provações! E seguiram com coragem, trabalho, união e amor.
Como você avalia o equilíbrio entre preservação das técnicas tradicionais e a incorporação de inovações tecnológicas no setor?
É preciso atenção. As inovações tecnológicas são importantes para o desenvolvimento do setor e, em alguns casos, para o bem-estar dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, técnicas de produção tradicionais protegem nossa cultura e patrimônio. As regiões onde o queijo foi caracterizado como tradicional brasileiro devem preservar essa história e qualquer reavaliação de processos precisa ter a participação de seus guardiões produtores. Por outro lado, é muito salutar que novas receitas sejam criadas e novos processos sejam admitidos em diferentes cantos do país para ampliar nossa cultura queijeira.
Quais são os principais desafios técnicos que os produtores artesanais brasileiros ainda enfrentam? Existem políticas públicas para fomentar esse desenvolvimento?
As políticas públicas voltadas para o setor só começaram a ser construídas a partir dos anos 2000, com iniciativas mineiras. E as ações concretas de âmbito nacional iniciaram apenas a partir de 2015. De todo modo, é inegável o impacto social e cultural do movimento. Os frutos serão colhidos à medida das ações coletivas que forem acontecendo. Minas é um bom exemplo. Os produtores aprenderam seu ofício através de ensinamentos que são passados há gerações. E foi assim que ser preservou um saber-fazer tradicional que se tornou patrimônio cultural. Porém, muitos deles carecem de maior conhecimento técnico para aprimorar seus queijos e ampliar suas possibilidades. Controles sobre os processos de fermentação e maturação tem sido um dos desafios, por exemplo. Muitas instituições como Emater, Epamig, FAEMG, Senar, Sebrae vêm contribuindo com diferentes ações para maior capacitação destes profissionais.
Como você vê o reconhecimento dos queijos artesanais brasileiros no mercado internacional? Temos potencial para competir com escolas centenárias?
O reconhecimento é inegável. Diversos profissionais queijeiros franceses, italianos alemães e de tantas outras nacionalidades já se encantaram com nossos queijos. Nos concursos internacionais o Brasil vem conquistando uma série de medalhas que aumentam a cada edição. Nossa rica biodiversidade e dimensões tornam o país uma potência mundial que precisa de um trabalho conjunto para ser efetivada. Não é uma questão de comparação. Não há o que comparar quando se trata da história e tradição europeia na produção de queijos, mas temos nosso espaço. É preciso ainda vencer o preconceito, a síndrome do vira-lata e trabalhar para que nossas preciosidades lácteas sejam reconhecidas por nós próprios, brasileiros.
Fale um pouco do Clube do Queijo... De que forma ele funciona?
Fundei o Clube em 2015. Somos o primeiro clube de assinatura de queijos artesanais do Brasil. Em 2017, chamei minha irmã, Eduarda, para ser minha sócia e estruturamos a empresa. Trabalhamos exclusivamente com queijos artesanais brasileiros. A proposta é apresentar novidades e descobertas aos assinantes. Sempre. Por isso não repetimos um queijo durante um ano. Já trabalhamos com queijos de 18 estados brasileiros. No total, já apresentamos mais de 300 queijos diferentes ao longo de 10 anos. São enviados frações dos queijos, eventualmente uma peça inteira, quando a mesma é pequena. O cliente não escolhe os queijos. Nós fazemos uma curadoria e selecionamos os kits que são entregues mensalmente. Juntamente com os queijos enviamos um folder com a descrição dos mesmos, uma breve apresentação dos produtores/fazendas/queijarias e sugestões de harmonizações.
Quais tendências você identifica para o futuro da produção queijaria artesanal no Brasil?
Sou um otimista inveterado na cultura queijeira. Como tendências, cito alguns pontos: A) haverá maior reconhecimento das regiões queijeiras tradicionais, inclusive com novas indicações geográficas surgindo e consequente aquecimento do mercado; b) as queijarias contemporâneas continuarão surgindo por todo o país com receitas inovadoras, como aconteceu com o universo dos vinhos e cervejas artesanais, por exemplo; c) o reconhecimento internacional continuará vindo à frente do próprio reconhecimento interno. O Brasil vai continuar brilhando em concursos lá fora e isso vai trazer mais público consumidor para os queijos; d) além da parte dos produtores, haverá maior profissionalização da cadeia queijeira, com destaque para o profissional queijista, aquele que faz a ponte entre o produtor e o consumidor e que, em certa medida, equivale ao sommelier.