Por: Ricardo Vieira Lima*

CRÍTICA / LIVRO / ESSE ANIMAL, O HOMEM: Uma poética como resposta

Composição abstrata criada com a IA Sora | Foto: Imagem criada com a IA Sora

Em 1995, Frederico Gomes irrompeu na poesia brasileira com um livro bastante incomum: "Poemas Ordinários", que, aliás, de corriqueiros, nada tinham. Ao contrário, a obra surpreendeu os leitores, na época, por sua intensa liberdade formal, aliada a uma boa dose de transgressão, que, em seus momentos mais radicais, gerou poemas que podem ser classificados como abjetos, repugnantes, pornográficos, embora atraentemente perturbadores.

Sete anos mais tarde, lançou "Outono & Inferno", livro que representou um amadurecimento nos temas e na linguagem do autor, que, a partir de então, tornou-se um poeta mais conciso e passou a privilegiar as formas fixas, ainda que com alguma liberdade métrica e rímica, em detrimento do versilibrismo, do poema em prosa e da prosa poética, marcas nítidas em sua obra de estreia.

"Olhar Forasteiro (precedido de "Moinhos de [In]vento"), publicado em 2019, confirmou essa virada estilística de Frederico, que, no entanto, manteve (felizmente) duas características que fizeram dele, desde o início, uma das mais singulares vozes poéticas deste país: um certo pessimismo shopenhaueriano (metafísico e, simultaneamente, pragmático), perpassado por uma postura crítica irônica, mordaz, desabusada até, diante das intempéries da vida e do mundo, suavizando, assim, a melancolia e a desolação, principais atributos que constituem a personalidade - humana e literária - do autor.

Pois Frederico Gomes está de volta, agora com "Esse Animal, o Homem" (precedido de "Tríptico", escrito entre 2014-18), livro que marca os seus 30 anos de carreira e o consolida como um dos grandes nomes da poesia brasileira contemporânea. Poeta de poetas, leitor voraz de seus pares - do passado e do presente -, Fred (como é chamado por seus amigos mais próximos) possui um vasto repertório cultural, de caráter universal, que, em suas origens mais remotas, aponta, no mínimo, para a Grécia Clássica; passa pelos maiores nomes da poesia e da cultura ocidental, a exemplo de Dante, Petrarca, Camões e Shakespeare; prossegue, ao longo dos séculos 19 e 20, com poetas como Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, Whitman, Emily Dickinson, Eliot, Pessoa, Sylvia Plath e Allen Ginsberg, até chegar aos brasileiros Souzândrade, Augusto dos Anjos, Jorge de Lima, Cecília, Drummond, Gullar e Ivan Junqueira.

Esse notável paideuma particular, com o qual Frederico Gomes costuma dialogar e, por vezes, se defrontar, não sufoca, nele, como já se disse, sua própria dicção, que, neste novo livro, volta-se sobretudo para a Hélade. Portanto, é com grande desenvoltura e naturalidade que o poeta se refere aos costumes e a grandes vultos da cultura grega clássica, como se fossem amigos próximos. Isso pode ser visto em alguns dos melhores poemas do volume, tais como "Ártemis", "Óbolo de Caronte" (obra-prima, escrita em 48 versos, divididos em 12 quadras), "Nereidas & Neuras", "Manhã de Eros tolo e Psyché Devassa" (desconstrução sarcástica pós-moderna do mito grego de "Eros e Psiquê", assim como do poema homônimo de Fernando Pessoa), ou "AntiTeseu", dentre outros. Porque Frederico sabe que "Esses são os dias antigos no agora/ como o de agora será antigo,/ porque outrora é agora, e agora/ será sempre outrora no fluir do tempo." ("O Tempo").

Todo grande poeta elabora uma poética própria. Frederico Gomes enfrenta esse desafio em "Esse Animal, o Homem". Indagado, por um "amigo e afanoso irmãozinho", se deseja a consagração em vida ou o reconhecimento póstumo, responde: "Saiba que ser um abacate/ mais me apraz: ao me lerem/ joguem em seguida o caroço pra trás." ("Uma Poética como Resposta"). Simbolicamente, em várias culturas, o caroço do abacate, sob a terra, é o que propicia o florescimento da vida, após a morte do fruto. Desse modo, mesmo sabendo que "escrever é um claro ofício do obscuro", e que sua arte é o resultado de uma perigosa fusão do sublime com o ordinário, o poeta não ignora que "a ponte do passado para o futuro/ é o tempo presente", e que sua escrita emite "pulsações/ da revelação da verdade eterna/ frente ao tempo ofuscante da era hodierna".

Macaque in the trees
Esse Animal, o Homem | Foto: Divulgação

*Doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ, crítico literário e poeta