Por: Affonso Nunes

A capital mundial do livro fala português

Lucas Padilha, secretário Municipal de Cultura | Foto: Marlon Soares/Divulgação

De 13 a 22 de junho o Rio recebe mais uma edição da Bienal do Livro. Seria mais uma, mas... Desde o dia 23 de abril, a Unesco indicou a cidade como Capital Mundial do Livro. É a primeira vez que uma cidade de um país de língua portuguesa recebe essa distinção. Mas não se trata apenas de uma homenagem. Cabe às cidades escolhidas apresentar um programa de atividades culturais inclusivas e sustentáveis, com impacto duradouro no setor editorial e no hábito de leitura da população.

Além da Bienal, a cidade sediará pela primeira uma edição do Prêmio Jabuti. O Rio receberá a Caixa Literária, acervo composto por obras clássicas e contemporâneas selecionadas por Portugal e outros Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) - Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.

O calendário de eventos contempla ainda atividades em bibliotecas municipais, exposições em museus, cafés literários, saraus, ações em livrarias e feiras literárias e intervenções culturais nos principais terminais de transporte público da cidade.

Sob a articulação da Secretaria Municipal de Cultura, foram colocados na rua quatro editais, com orçamento total de R$ 5,14 milhões, com recursos da Política Nacional Aldir Blanc, para projetos como produção de feiras literárias, promoção e capacitação de escritores cariocas e ações voltadas à difusão da literatura brasileira e promoção de autores cariocas.

São eles o edital Feiras Literárias, com R$ milhão em recursos, para apoiar projetos de incentivo à leitura e de valorização da literatura e da escrita, através da seleção de Feiras Literárias.

Com R$ 600 mil de recursos, o objetivo do edital Rio de Escritores vai capacitar 70 escritores cariocas para publicação de obras literárias.

O edital Viva O Talento - Edição Rio Capital Mundial do Livro vai apoiar projetos que promovam ações literárias, buscando a ocupação de espaços públicos com atividades culturais dinâmicas voltadas à difusão da literatura brasileira e promoção dos autores cariocas. os recursos deste programa chegam a R$ 700 mil. E o maior deles, com investimento total de R$ 2,84 milhões, pretende promover ações literárias contemplando 21 projetos.

Quis o destino que o responsável por essas ações de fomento à leitura fosse um leitor voraz. Nas páginas seguintes, o secretário Lucas Padilha fala de alguns desses projetos. Advogado, gestor público e mestrando em antropologia, Padilha já ocupou a Coordenadoria de Relações Internacionais da Prefeitura e as secretarias municipais como Meio Ambiente e Casa Civil. Ele também discorre sobre sua formação como leitor e o papel do livro na sociedade.

 

Lucas Padrilha: 'Queremos fomentar a cultura de forma qualificada, especialmentea literatura'

Eu queria que o você falasse um pouco de como chegou a essa relação tão próxima, tão querida com o livro. O que lê?

Lucas Padilha - Eu tenho muitas dúvidas sobre o que eu sou. Se eu sou advogado, gestor público, antropólogo, se sou político... Mas tenho uma certeza: sou leitor. E a identidade do leitor não está relacionada a um gênero literário ou a um tipo de escritor ou gênero. O leitor é a pessoa que sente — e sabe — que tem um poder especial, ainda mais hoje em dia, de criar um tempo para ser humano.

É um hábito importante...

Eu recomendo a leitura para a saúde mental de qualquer pessoa, de qualquer idade, de qualquer grupo social, vindo de qualquer classe, de qualquer identidade. O livro estimula a cultura da identificação. Não só da identidade. Reforça aquilo que é próprio, singular, as culturas. A literatura brasileira é brasileira por causa disso. A literatura afrocentrada é antirracista por causa disso. Mas, acima de tudo, a leitura não reforça só a identidade, reforça a identificação. E é a leitura, o livro, o mínimo denominador comum de todas as artes, que faz com que a gente se conecte com coisas importantes e inúteis. O livro é o objeto mais inútil da história da humanidade. Mas, se ele não fosse importante, Deus não teria escolhido ele em quase todas as religiões monoteístas. Os deuses todos da humanidade não teriam escolhido a palavra, inclusive oral, como literatura.

Inclusive porque livro é uma coisa e literatura é outra. Mas o livro é inútil?

O livro é de uma inutilidade incrível (risos). Ocupa espaço, custa dinheiro... você precisa comprar e saber o que quer. Mas existe uma certa salvação no livro, individual e coletiva ao mesmo tempo. Quando a gente diz "a educação vai salvar o país", acho que as pessoas falam de livro. Não só de professor, de escola... falam de livro.

Os autodidatas se valem deles...

A Conceição Evaristo é esse símbolo importante, essa pessoa criativa e genial que faz tão bem a tanta gente. Ela é fruto dos livros — dela mesma e dos outros. Ela é mais leitora do que professora. E mais escritora do que professora. Nada contra nenhum professor. A cultura do livro sem professor não existe. Um evento como a Bienal é importante porque tem os professores. São as pessoas que apresentam o livro. Livro é como gente: precisa ser apresentado. Ninguém conhece um livro se não for apresentado.

E quem te apresentou ao livro?

Primeiro foram os meus pais. Meus pais são médicos, eu cresci em Londrina, no Paraná, e eles sempre me deram livros que não tinham nada a ver com o que eu estava fazendo na escola. Foi a genialidade deles. Então, eu tinha seis anos de idade e uma obsessão por jogos eletrônicos de Idade Média. Eu não sei por quê. Eu achava a Idade Média muito fabulosa, eu não sabia se existia dragão ou não, entende? Para mim, a França era um lugar que tinha dragão. A fantasia que eu tinha — em que todos os personagens se misturavam — foi organizada dentro de mim, como repertório, com uma série da editora Ática: como seria a sua vida na Grécia", no Egito, na Mesopotâmia... Uma série de livros que explicam como seria a sua vida em uma civilização. Aquilo, para mim, era tão delicioso quanto assistir Power Rangers, brincar com os amigos na rua ou ir ao shopping assistir a um filme. Aquilo, quando eu tinha seis, sete anos de idade, já era uma coisa presente na minha vida.

Não passou por livros de temática infantil?

Não. Foram esses livros de não-ficção, desse "Como seria a sua vida..." Aí eu comecei a me formar antropólogo antes de saber que era isso. Antes de saber ler um livro, eu tinha um livro cheio de coisas escritas com fotos que falavam: "vaso grego, usado para guardar vinho, para guardar azeite". Eu tinha um fascínio por aquilo. Eu lia esses livros todos como alguém que tinha que aprender como seria a minha vida se eu tivesse nascido em outro lugar do mundo, em outra época. Eu não tinha consciência do que era a Grécia Antiga, mas eu sabia que aquele vaso era diferente e interessante. Até porque vivia numa cidade sem um museu de história universal. Londrina não é Londres, não tem um British Museum. O Brasil não tem. O que tinha, pegou fogo. Eu nunca vi múmia. Eu vi múmia fora do Brasil. Mas eu li a múmia. Então, de certa forma, eu comecei a me civilizar. O livro me civilizou antes de tudo.

E depois?

Depois eu fui para Harry Potter. Vivi aquele fenômeno de frenesi literário e desejo quase sexual pelo livro. As pessoas faziam filas na porta da livraria para o lançamento. Eu me lembro do livro do "Enigma do Príncipe", que foi o primeiro que comprei no dia do lançamento. Eu corri para a livraria com R$ 50 na mão. Eu devia ter uns 10, 12 anos. Corri, abandonei meus pais. Eu devo ter agredido umas cinco crianças, involuntariamente. Eu peguei o livro. E estava todo mundo pegando o livro. O livro ia acabar. Eu peguei dois. E eu comprei dois. O meu desejo de ler era tão grande que eu não queria comprar um só.

E nada de literatura brasileira?

Nada. Eu fui conhecer literatura brasileira depois. Porque na escola a literatura brasileira, por muito tempo, foi apresentada como uma sessão de tortura. E como eu era um aluno levemente indisciplinado — bom aluno, mas levemente indisciplinado: tirava 10 em tudo de Humanidades e sobrevivia ao resto. História e Geografia. Eu tinha obsessão. Hoje em dia chamam de hiperfoco. Na minha época ainda era obsessão.

Português, não?

Não suportava. Português e literatura. Gramática. Era História e Geografia. E a gente aprende português lendo, né? Mas eu me lembro claramente: meu professor de gramática no colégio foi o Evanildo Bechara (falecido no último dia 22). Tive aula com o Bechara porque lia a gramática dele durante as aulas. Não seguia o material didático no colégio, eu estudava pela gramática do Bechara. Porque tinha exemplos encantadores, de literatura. Mas a pessoa que mais me formou foi uma professora de literatura do colégio, a Ana Sandra. Ela falou: "Lucas, você é um leitor. Você gosta de ler. Só não gosta de ler resumo de literatura. Você não lê para estudar. Você quer ler?" Eu falei: "Quero." Então ela me mandou ler "Noites Brancas", de Dostoiévski. Comprei a edição de bolso numa banca de jornal por uns 15 reais. A partir daquele momento, dia sim, dia não, religiosamente, eu ia a uma livraria e comprava um livro de bolso para ler em um ou dois dias. Eu voltava e comprava outro, e assim por diante.

O que mais você leu nessa época?

Lembro-me claramente de "Fausto", de Goethe, um livro que me desfez por inteiro. Como pude, com a minha mentalidade religiosa tão pequena, não compreender Mefistófelis? Você se fascina pelo bem e pelo mal de um jeito tão romântico. O trecho da Noite das Bruxas é um canto. Aquilo muda o nível de um ser humano. Outra coisa que muda o nível de um ser humano é Bukowski. Eu lia muito Bukowski, me intoxicava com um Bukowski que é absolutamente violento e sujo. Eu amava aquilo. Eu lia, por exemplo, Flaubert e Bukowski; Machado de Assis e Olavo Bilac. Não tinha curadoria para nada, e acho que até hoje sou um leitor assim.

Se tornou um leitor voraz...

Hoje, admito que compro muito mais livro do que leio; leio 10% do que compro e do que ganho, e me orgulho disso. Porque meus livros estão muito bem, eles falam com os outros, não precisam de mim. Aquela música da Mariana Lima com letra do Antônio Cícero — "as coisas não precisam de você" — os livros também não. Meus livros não precisam de mim, mas precisam dos outros. Então, preciso que eles façam companhia aos outros.

Há um livro favorito?

"Cândido", do Voltaire. É uma obra de ficção científica. Acho que ninguém fala nisso. É o livro mais fabuloso da história. Bota o terremoto de Lisboa no centro da história da humanidade e fala sobre jardinagem. Trata da nossa ingenuidade e vislumbra a modernidade.

E poesia? Você lê?

Meu poeta favorito é o Ferreira Gullar. Ele conseguiu extrapolar o limite da página e da palavra e fez isso sem distorcer a palavra. Escreveu letra de música, era uma figura interessante, faz falta todos os dias. Era o último dos modernistas, da linhagem do Oswald de Andrade. Eu acho que, assim, o Brasil precisa voltar da utopia, precisa voltar urgentemente, é urgente.

Vamos falar um pouco de política cultural da pasta que você ocupa. O Rio tornou-se capital mundial do livro, a primeira cidade de língua portuguesa a receber essa distinção, e estamos às vésperas do Bienal. Qual é o eixo das políticas públicas da cidade nesse contexto?

Queremos fomentar a cultura de forma qualificada, especialmente a literatura, com ciclos e clubes de leitura, mediação literária e roteiros culturais para estimular o turismo. A Bienal vai trazer eventos profissionais, como o Publisher Summit, e o Prêmio Jabuti, para inovar e construir um futuro para a leitura.

Quando se fala da Bienal na mente de muitas pessoas se concebe uma imagem. A que eu concebo é aquele batalhão de crianças que está lá vibrando, indo atrás dos lançamentos, seja o Harry Potter da vez, tem um autor infantil, o Ziraldo. Quando ia na Bienal é um acontecimento, aquilo ali é assim, você vê esperança no país quando você vê essas crianças, o desejo pelo livro, esse desejo que nasce.

Temos uma pesquisa mostra que o público mais ligado à leitura lúdica são as crianças, mas isso diminui com a idade, especialmente após a escola. Elas têm fome de faz de conta e conseguem se desligar do mundo real. O público 50 é um desastre no Brasil. Então o futuro do aumento dos níveis de leitura passa por eles. O futuro também está no idoso.

Fale um pouco do Rio de Livros, esse projeto que disponibiliza livros nas estações do BRT que as pessoas pegam para ler e devolvem (ou devolvem outro livro), fazendo que essas obras circulem. Houve uma tentativa anterior, que não deu muito certo. O que foi aperfeiçoado nesta nova versão?

Criamos uma estratégia para cada modal, focando no BRT como ponto cultural. O tempo do deslocamento é oportunidade para difusão cultural, incluindo audiolivros e intervenções poéticas. Vamos fazer editais e ações com editores e escritores para conectar pontos, fazendo o livro andar pela cidade e criar uma cultura de troca. Queremos estender para outros modais e até o Galeão, com livros em várias línguas.

Você falou em editais e há um outro edital em curso para estimular novos autores...

Estimular a criação literária é fundamental, pois literatura é pertencimento. Queremos que novos autores periféricos também sejam os clássicos do amanhã, valorizando histórias e nomes importantes da diversidade cultural do Rio, como os Irmãos Rebouças e Pixinguinha.

Como você vê o desaparecimento gradual das livrarias?

Incluímos as livrarias na estratégia de fomento através do ISS, pela primeira vez, reconhecendo que são essenciais para formar leitores, mais do que plataformas digitais. Precisamos fomentar as livrarias físicas, unir editoras, livrarias e bibliotecas comunitárias para fortalecer essa rede cultural. A gente precisa também ter uma biblioteca de referência na cidade.

Como seria essa biblioteca?

Uma biblioteca hoje que alimente as outras com um acervo tanto física quanto digital. Um lugar de culto ao livro, que tenha livro, teatro e também tenha comida.

Como se mensuram os resultados de todas essas ações?

Estamos fazendo estudos com a Câmara Brasileira do Livro e o Sindicato Nacional dos Editores e Livreiros para mapear bibliotecas comunitárias e pontos de leitura, buscando dados sobre impacto e acesso. Nossos editais atuais têm resultado expressivo, com maior participação de mulheres, negros, indígenas e estudantes universitários. Ou seja, temos avanços.