Por: Aldo Tavares*

Linhas de fuga: Combate identitário

Ilustração para a coluna Linhas de Fuga | Foto: Imagem criada pela IA Sora

Espelho. Diante de sua superfície, identifico-me: meu rosto assegura a mim que "eu sou eu", não outro. Assim, repousado sobre si mesmo, o olhar tem a mais absoluta verdade de que meu rosto é meu nome, estando essa relação, portanto, estável, fixa, segura, e a fiscalização do Detran me para. O policial pede a identidade. Compara rosto e foto. Sem contratempo, o guardião da ordem diz que posso seguir a viagem: "tudo está normal". A identidade, porque garante organização, permite a a vida seguir normalmente.

Entretanto, porquanto meu rosto não permanece o mesmo, a foto da carteira de identidade, entre 12 e 60 anos, precisa ser trocada a cada 10 anos, posto que, caso não seja trocada, serei identificado como outro. Isso se impõe como lei porque o rosto é "natureza", ou seja, tradução do grego "phýsis", natureza significa "movimento vital". O rosto é movimento. A identidade fixa, é estável; a identidade, porém, não passa de um corte nominal na superfície, superfície essa com seus graus de velocidade. A identidade, portanto, um engano proporcionado pelo olhar, pela aparência.

O primeiro ocidental a pensar a identidade foi Parmênides, ele quem pensa "o ser", ele quem pensa "o-que-é", mas pensa o ser fora do movimento, mesmo porque no movimento não é possível o ser. Então, a filosofia de Platão, em seus últimos 40 anos, pensa o ser "entre" repouso-e-movimento, deixando tal beleza de pensamento nas linhas de "O Sofista". A luta identitária, contudo, oposta a "O Sofista", afirma-se com os seguintes termos: "eu sou e o outro não é", quer dizer, porque existe algo fora do ser, "ele não é o que sou". O outro, minha oposição.

A luta identitária afirma, portanto, "ser e não-ser". Heráclito afirma essa oposição. Hegel também. Em seus últimos 40 anos, Platão a supera, porque, em "O Sofista", em sua sétima síntese, "o-não-ser-é-o-ser", não havendo dualismo, não havendo oposição. Ver tamanha beleza de pensamento, no entanto, não depende dos olhos, e sim de uma filosofia que, pensando para além da aparência, movimenta-se "entre" repouso-e-movimento ou "entre" Parmênides-e-Heráclito, filosofia essa que nos liberta dos extremos.

A luta identitária não leu esse profundo Platão, mas Proudhon-Bergson-Nietzsche-Foucault-Blanchot-Serres-Deleuze, por exemplo, não só leram como foram afetados por seu pensamento. Por ser identidade, tal luta não cria linhas de fuga.

Retomando o que escrevi acima, tudo é "movimento vital", porque tudo é "phýsis", isto é, tudo é natureza; portanto, natureza é movimento vital. O rosto é movimento e, segundo Gilles Deleuze, é político.

Pulsa uma filosofia que parte do conceito de movimento, cuja linha filosófica, traçada por Heráclito, não só atravessa como entrecruza Platão em "O sofista"; mas, embora pensem o movimento vital de forma dessemelhante, ambos não são opostos, havendo tão somente um grau de diferença entre Heráclito e Platão.

Hegel pensa o movimento segundo esta marca de Heráclito: ser e não-ser, quer dizer, existe algo externo ao ser, a oposição. Hegel não vai ao Platão dos últimos 40 anos, quando o filósofo grego, por meio de uma dialética aberta, concebe o movimento sem oposição, e sim com as graduações do mesmo.

Muita abstração? Ora, sem abstração, não se amplia a realidade concreta, fazendo com que não entendamos que a dialética de Hegel, por pensar a oposição entre ser e não-ser, por pensar a contradição no movimento, é inútil para lermos o poder que age no lugar Menor, no lugar molecular, isto é, nos detalhes do cotidiano de Amado Benigno da Silva, motorista de Getúlio Vargas a serviço de Luís Carlos Prestes; nos detalhes do cotidiano de cabo Anselmo, o amor do DOPS a serviço da guerrilheira Soledad; nos detalhes do cotidiano de Severino Theodoro de Mello, o camarada da ditadura militar a serviço do PCB como dirigente do Comitê Central.

Se o arquiteto Ludwig Mies disse "Deus está nos detalhes", o poder da ditadura cívico-militar também esteve, comportando-se ora como o motorista de Preste, ora como o amor de Soledad, ora como o camarada do PCB. O desmoronamento de uma casa, sabemos, começa pela impercebível insignificância de uma infiltração na parede.

Em uma das belas passagens de "Microfísica do Poder", Foucault escreve na página 128 que "todo detalhe é importante, pois, aos olhos de Deus, nenhuma imensidão é maior que um detalhe". Poético: nenhuma imensidão é maior que um detalhe. Mas nós, que não somos filósofos e muito menos poetas, somos grosseiros quando nos referimos ao poder como identidade, quer dizer, como se fosse possível identificá-lo como motorista, como amante, como camarada. O poder é não identitário, tal qual o rosto do traidor, que jamais luta contra, pois o inimigo é amigo ou o não ser é o ser. Não há oposição. A dialética é não hegeliana.