Por: Olga de Mello | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA / LIVROS: Rainhas do lar e da portapara fora

coluna livros | Foto: Criado com a Inteligência Artificial Dall-E

Segunda data de maior apelo comercial no Brasil, o Dia das Mães só perde em compras de presente para o Natal. Criada em 1914 nos Estados Unidos, chegou ao Brasil na Era Vargas, em 1932. Mal se passou uma década, e as mulheres que viveram a Segunda Guerra Mundial fortaleceram a contestação do destino de rainhas do lares. O reflexo sobre os papeis femininos contemporâneos na literatura oferece bons presentes para as mulheres, ainda responsáveis por tarefas que deveriam, há muito, ser divididas pela família.

Lançado em 1952, "Na voz dela" (Companhia das Letras, R$ 99,90), de Alba de Céspedes, traz uma protagonista que não quer repetir o modelo de casamento dos pais ao tomar como marido um professor antifascista. Quase um esquerdomacho da atualidade, o marido é mais convencional do que Alessandra esperava, e ela tem dificuldade para se libertar da função reservada às mulheres - mãe, cuidadora e responsável pelas tarefas domésticas -, mesmo depois da queda do fascismo na Itália. "Eu preferia comer somente pão e azeite a ter de lavar pratos (...). Não é verdade que fazer essas coisas esteja na vocação das mulheres: elas as fazem quando é necessário e sobretudo para serem úteis e agradáveis aos homens (...)", diz Alessandra, inconformada com as cobranças que as mulheres ainda hoje sofrem.

A carreira artística foi a maneira pela qual a consagrada atriz Rebecca Latte escapou das obrigações 'femininas'. Ainda assim, precisa exibir uma beleza incompatível com seus mais de 50 anos, quando apenas o talento não garante sua empregabilidade em tempos de pandemia. "Querido babaca" (Fósforo, R$ 80), de Virginie Despentes, aborda o feminismo atual também pela ótica masculina, através de Oscar, um escritor que sofre cancelamento nas redes sociais por uma acusação de assédio sexual ocorrida dez anos antes. Conhecidos desde a juventude, os dois trocam e-mails ao longo do isolamento social, discutindo a opressão que regula o comportamento de vidas constantemente observadas.

Ao levar trechos de "Operação impensável" (Intrínseca, R$ 53,90) a um podcast, alguns meses atrás, a escritora Vanessa Barbara revelou publicamente o quanto o romance sobre o fim de um casamento era calcado em sua realidade. Há dez anos, ela contava a traição do então marido, descoberta casualmente, junto com os relatos dele a um grupo de amigos - todos escritores renomados. A confirmação de que a ficção tinha como base a experiência de Virgínia levou ao afastamento do ex-marido de suas funções em uma editora e à retratação dos amigos intelectuais. O livro ganhou nova impressão e, à parte a motivação da autora, é um doloroso retrato do término de uma relação de confiança.

O amor à Romeu e Julieta se reproduz continuamente na literatura - e no cinema -, nem sempre com uma conclusão triste como a do casal original. "Se acaso numa curva" (Intrínseca, R$ 79,90), de Francisca Libertad, é um daqueles romances para adolescentes que agrega leitores de qualquer faixa etária ao fixar sua ambientação nos rincões de marginais do Rio de Janeiro. Dora, menina de classe média alta, aos 15 anos, se apaixona pelo jovem Samurai, chefe do tráfico na favela da Zona Sul carioca próxima à casa da menina. Não é a única patricinha envolvida com traficantes, mas desfruta da condição de primeira-dama do morro, enquanto esconde sua vida amorosa da família e dos amigos do colégio, sabendo que o desfecho de sua história está fadado à tragédia - em reflexão que amadurece gradualmente, quando percebe o quanto sua própria segurança é frágil diante da guerra entre gangues e do tráfico com a polícia.

A relação delicadíssima entre empregador e empregada doméstica se sobrepõe à trama de "Limpa" (Fósforo, R$ 71,90), de Alia Trabucco Zerán. Contratada para cuidar da casa e 'ajudar' a olhar a bebê recém-nascida de um casal rico, Estela se afeiçoa à criança. A narrativa se desvenda durante o depoimento de Estela à polícia depois que um crime ocorre na casa da família, trazendo o entendimento da empregada do quanto é explorada pelos patrões, mas sua opção pelo trabalho degradante, ainda que compensado pelo apego à menina.