Por: Affonso Nunes

A força de um selo resistente

Alcides Ferreira, Adriana Del Ré e Mário De Aratanha: autores do livro que narra a saga do selo Kuarup, criado em 1977 | Foto: Leonardo Rodrigues/Divulgação

Fundada em 1977 por Mário de Aratanha, a Kuarup nasceu com o propósito de dar espaço à música brasileira em sua diversidade mais profunda — da erudição de Villa-Lobos à tradição oral da cantoria sertaneja. Seu precioso catálogo, hoje com centenas de títulos, documenta parte essencial da cultura musical do país. Estão ali discos emblemáticos como "Cantoria 1" e "Cantoria 2", gravados por Elomar, Xangai, Geraldo Azevedo e Vital Farias; "Ao Vivo em Tatuí", de Renato Teixeira com Pena Branca & Xavantinho; "Dois Irmãos", de Paulo Moura e Raphael Rabello; e "Live At The Rio Jazz Club", de Baden Powell. A gravadora também detém o maior conjunto de obras de Heitor Villa-Lobos disponível no Brasil.

Lançado pela própria Kuarup, o livro "Tocando em Frente: A História da Produtora Kuarup ou Como Sobreviver na Economia Criativa no Brasil" narra, com riqueza de detalhes e vozes complementares, o percurso de uma das mais longevas e influentes produtoras culturais do país. Assinado por Mário de Aratanha, Adriana Del Ré e Alcides Ferreira, o volume cobre quase cinco décadas de resistência criativa em meio a mudanças tecnológicas, crises econômicas e transformações profundas na indústria fonográfica brasileira.

Mais do que um registro de memória institucional, a obra funciona como um documento histórico sobre os bastidores da cultura brasileira fora dos grandes eixos comerciais. O texto apresenta uma linha do tempo que passa por momentos críticos da economia do país, mudanças no consumo de música e nos formatos de distribuição, sempre filtrados pela perspectiva de quem atuou de forma independente, com foco na qualidade artística e no compromisso com o registro da diversidade musical.

A narrativa da obra é dividida em dois blocos principais. A primeira parte, escrita em primeira pessoa por Aratanha, mergulha nos bastidores da fundação da gravadora e nos desafios de operar uma produtora independente em pleno regime militar, em meio à ditadura e à censura. O autor relembra os primeiros anos da Kuarup, os artistas que se tornaram parceiros e os caminhos técnicos e criativos para gravar e distribuir música em um tempo analógico, marcado por dificuldades logísticas e orçamentárias.

A segunda parte acompanha a fase mais recente da Kuarup, iniciada em 2009, quando o catálogo foi adquirido pelo jornalista e executivo Alcides Ferreira. Com larga experiência nos mercados financeiro e de comunicação, Ferreira assumiu a direção da produtora e levou sua sede para São Paulo, redesenhando o modelo de negócios e ampliando o campo de atuação da marca. Foi nessa etapa que a gravadora passou a investir também em literatura e em projetos audiovisuais, consolidando sua presença em múltiplas plataformas culturais.

Essa fase é documentada com a colaboração da jornalista Adriana Del Ré, que entrevistou nomes essenciais para a continuidade da Kuarup, incluindo técnicos, produtores, músicos e gestores que testemunharam momentos decisivos da trajetória da empresa. Os depoimentos compõem um mosaico revelador sobre as estratégias de sobrevivência da cultura independente em meio à concentração de mercado e à crise do CD, que impactou gravadoras em todo o mundo.

"O livro tem o papel de contar uma história que poderia ter se perdido. A Kuarup é a principal produtora independente do Brasil e a mais longeva, com quase meio século de vida. É essencial que as pessoas conheçam sua história e como conseguimos sobreviver a tantas crises no Brasil ao longo desse período", afirma Ferreira.

Os autores trazem olhares distintos que se complementam. Aratanha, com sua experiência como jornalista e produtor musical, oferece uma visão de bastidor que contextualiza o mercado fonográfico das décadas de 1970 e 1980, além de apresentar um panorama sobre a relação entre arte e resistência cultural no Brasil. Del Ré, com sólida trajetória na cobertura de música, oferece recortes jornalísticos e análises consistentes sobre os diferentes momentos vividos pela Kuarup. Já Ferreira acrescenta uma visão estratégica e empresarial, mostrando como é possível manter um projeto cultural independente financeiramente sustentável no cenário brasileiro.

Ao longo de suas páginas, "Tocando em Frente" também ilumina a trajetória de artistas que encontraram na Kuarup um espaço de liberdade e acolhimento. Ney Matogrosso, Fagner, Wagner Tiso, Rolando Boldrin, Arthur Moreira Lima, Paulo Moura, Raphael Rabello, Pena Branca & Xavantinho, Geraldo Azevedo, Taiguara, Hermeto Pascoal e Elomar são alguns dos nomes que integram a discografia da gravadora.

Em tempos de pulverização do conteúdo e da cultura do efêmero, o lançamento de um livro como esse é um gesto raro. Ao contar a história de uma produtora que desafiou a lógica do mercado e se manteve viva pelo compromisso com a arte.