Por: Affonso Nunes

A luta para quebrar o ritmo da misoginia

Imagem gerada por IA sobre a presença das mulheres no mercado da música | Foto: Criado pela IA Gemini

Apesar dos avanços conquistados ao longo das últimas décadas, a indústria da música ainda impõe barreiras significativas às mulheres, sobretudo àquelas que atuam como instrumentistas, produtoras ou técnicas. Invisibilidade, desigualdade de oportunidades e resistência à presença feminina em cargos de decisão seguem sendo marcas persistentes nesse mercado. Foi diante desse cenário que a jornalista, pesquisadora e musicista Julia Ourique decidiu investigar a fundo a relação entre feminismo, artivismo e indústria musical brasileira.

Após quase dez anos de pesquisa, Julia lança nests quarta-feira (7), às 18h, no Espaço Multifoco, na Lapa, o livro "Feminismo na Indústria da Música" (Ed. Multifoco). A obra é resultado de sua dissertação de mestrado e também parte de seu doutorado em Comunicação pela Uerj.

Com um olhar crítico e minucioso, o livro propõe uma análise da inserção feminina no mercado musical e discute o feminismo como ferramenta de transformação. Dividido em três capítulos, o título percorre uma historiografia do feminismo no Brasil com foco nas mulheres na música, explora o conceito de artivismo e examina mudanças recentes na indústria fonográfica. O terceiro capítulo se dedica ao estudo de caso da PWR Records, selo que alia práticas de mercado aos princípios feministas. A inciativa teve vida curta mas, como enfatiza a autora, deixou importantes lições.

Júlia Ourique: 'É preciso criar redes e fazer com que todas avancem juntas'

Julia Ourique, jornalista e pesquisadora | Foto: Debora Gauziski/Divulgação

Em "Feminismo na Indústria da Música", Julia Ourique investiga como o artivismo — a arte usada como forma de ativismo — pode ser uma ferramenta de resistência e transformação no mercado musical. A partir de sua trajetória como jornalista, musicista e pesquisadora, ela reúne quase uma década de estudos sobre desigualdade de gênero na música. "A música, quando pensada como artivismo, não é apenas expressão artística ou entretenimento, mas um ato político em si", diz. Na entrevista a seguir, Julia reflete sobre exclusões históricas e aponta caminhos possíveis.

O que a motivou a escrever essa obra?

JULIA OURIQUE: A injustiça em relação ao tratamento dado às mulheres é o que me faz escrever. Não só este livro, mas todos os artigos que publiquei anteriormente. A pesquisa surge ainda na especialização, que realizei entre os anos de 2016 e 2018, no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). O trabalho de conclusão foi um mini-documentário, curta metragem de 15 minutos, intitulado "O Futuro é Feminino", disponível no YouTube. Nele, converso com mulheres instrumentistas e uma das sócias do selo musical feminista PWR Records. Neste trabalho em específico, a ideia era ouvir as histórias de descriminação, o tratamento misógino que estas mulheres observavam na indústria da música, fosse em shows, em reuniões, ou mesmo na internet. A partir destas conversas, percebi que existia uma união entre as mulheres que trabalham na indústria da música que é o que faz com que a gente continue insistindo nesta carreira. Utilizo "a gente" porque também trabalho na indústria e tive que aguentar discriminações a partir do meu gênero.

Durante sua pesquisa, você encontrou desafios específicos em relação à presença de mulheres na música brasileira, especialmente as instrumentistas?

Muitos. Desde o momento em que se decide por determinado instrumento, como a bateria, tido como um instrumento masculinizado, que exige força e, portanto, não combinaria com a suposta delicadeza intrínseca às mulheres. E, até mesmo, quando esta mulher já possui a sua banda, está em cima do palco, afinando o seu instrumento, precisa que o técnico de som faça ajustes em uma das caixas no palco e este se recusa a fazer, porque acredita que a instrumentista não é boa o suficiente para saber o que está fazendo; Nesta situação, um homem da banda da artista teve que ir até o técnico de som e mostrar que a artista estava certa. Em outra ocasião, e isso é frequente até hoje, a artista no palco, tocando, e o público, principalmente em shows de heavy metal - em que homens são a maioria - pedindo que a artista sorria mais, que mostre os seios, como uma forma de dizer: "só estou aqui porque você é uma mulher, e só penso em você como um objeto feito para o meu prazer". Até quando a gente precisa sempre ter um homem ao nosso lado, concordando com o que dizemos, para que a nossa opinião, o nosso corpo, sejam respeitados?

Como superar situações como essas?

Acredito - e as pesquisas mostram isso - que a melhor forma de se superar estas questões é por meio da educação, mas isso leva tempo. O que podemos fazer agora é implementar e fiscalizar leis que permitam e incentivem cotas de mulheres nos setores do mercado de trabalho que são dominados por homens. Claro, a minha pesquisa é voltada para a indústria da música, mas os mesmos preconceitos são também encontrados na engenharia, no futebol... A ideia é que com as cotas, o convívio, perceba-se que o gênero é só um detalhe. Essa mesma iniciativa tem sido aplicada na Argentina, desde 2019, com a lei Mercedes Sosa, em que 30% dos nomes em um lineups de festival de música precisam ter mulheres.

O conceito de artivismo é central no seu livro. De que forma a arte e a música podem ser usadas como ferramentas para esse ativismo feminista?

A música, quando pensada como artivismo, não é apenas expressão artística ou entretenimento, mas um ato político em si. Ela se torna um instrumento de luta ao ampliar vozes marginalizadas, desafiar estruturas opressoras e propor novas subjetividades. Artistas artivistas usam diferentes gêneros musicais, criam selos independentes e organizam coletivos para promover a inclusão e visibilidade de mulheres no mercado musical. Como é o caso da PWR Records, Efusiva Records, Motim, Hi Hat Girls, Girls Rock Camp e Treinam Mulheres que são projetos citados no livro e que são criados e gerenciados por mulheres. Al´pem disso, o artivismo feminista também atua nas bordas da indústria da música, utilizando as ruas, as plataformas digitais e as redes sociais como meios de circulação, engajamento, reforço... Ele transcende os espaços tradicionais da arte, ocupando o espaço público, e "fura bolhas" ao alcançar públicos diversos com mensagens de transformação. Vale também dizer que o artivismo feminista também é carrega uma dimensão micropolítica: desafia as normas vigentes, produz novos imaginários sociais e transforma a arte em ferramenta de questionamento radical, promovendo a (re)existência frente às lógicas hegemônicas da indústria da música.

Quais foram as mudanças mais significativas que você percebeu nos últimos anos, especialmente em relação ao papel das mulheres na indústria fonográfica?

A facilidade em gravar a sua própria música, fato que se deu após o barateamento dos computadores e das mídias de gravação, no início dos anos 2000, e posteriormente, com o aumento da capacidade da internet, alcançando maiores velocidades, foram tecnologias na área da comunicação que impulsionaram a entrada de mulheres na música. Mas não só. Artistas periféricos, negros, LGBTQIAPN também ganharam possibilidades de gravar e disseminar sua música a partir desta mudança na indústria fonográfica. Ainda na primeira década, embora diversos artistas do mainstream - o grande mercado da música, com as grandes gravadoras - tenha sido contra a disponibilização gratuita de músicas para download na internet, foi essa possibilidade, mais tarde organizada pelo MySpace, pelo Orkut, é que facilitaram que vários artistas da música independente, e principalmente artistas que as gravadoras costumavam ignorar, ganhassem o seu destaque, o conhecimento do seu público.

O que você considera mais relevante na trajetória do selo PWR Records, e como ele articula valores feministas nas dinâmicas do mercado musical?

O que mais me chama a atenção na história da PWR é que foi um selo iniciado por duas jovens mulheres - estavam na casa dos 20 e poucos - em Recife (PE) e que alcançaram tanto, rapidamente, sabe? O barulho que este selo de música fez entre os anos de 2016 a 2024 foi ensurdecedor. Todo mundo que trabalhava com música conhecia estas mulheres e queria trabalhar com elas. Eram turnês pelo Nordeste, Sul e Sudeste organizadas por elas e que davam super certo, mesmo com pouca grana. E neste meio tempo, elas indicavam empresas de outras mulheres, mulheres instrumentistas, técnicas de som, produtoras, designers... todas as funções necessárias para se construir uma carreira na música eram executadas por mulheres. A PWR Records pode ter acabado - aconteceu após o fechamento do livro, em 2024 - mas as redes que ela construiu ficaram firmes e fortes. Um trio de pesquisadoras (Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser) diz em seu livro "Feminismo para os 99%: um manifesto" que de nada adianta estourar o teto de vidro da opressão, se quem vai recolher os cacos são mulheres negras, periféricas, LGBTQIAPN+ , imigrantes... Quando uma avança, todas precisam avançar, e a PWR trazia isso em sua raiz a ideia de que é preciso criar redes e fazer com que todas as mulheres na indústria da música avancem juntas.