Dalal Achcar vasculha suas memórias e nos conta a história de "Água de Meninos". Tom era frequentador assídeuo da escola de ballet que a coreógrafa mantinha em Ipanema. O Maestro Soberano gostava de testar melodias ao piano entre uma aula e outra até que certa Dal encomendou ao amigo uma trilha para um espetáculo inspirado em Salvador. O compositor entregou seis faixas orquestradas por Radamés Gnattali, mesclando composições próprias e parcerias com Vinícius de Moraes a ritmos baianos, capoeira e referências a Dorival Caymmi e João Gilberto. Mas a montagem nunca aconteceu.
"Mostrar para o Brasil a riqueza que temos em termos de música, de dança e de manifestações populares é magnífico, ainda mais nos dias de hoje em que tudo é digital. Reviver o Tom, que foi quem popularizou a música brasileira no mundo inteiro, é uma forma de fazer essa nova geração se dar conta da riqueza dos artistas brasileiros que marcaram época", vibra a coreógrafa, que aos 15 anos começou a dançar sob tutela de Natália Makarova e, aos 18, fundou a Associação de Ballet do Rio de Janeiro.
A montagem, assinada em parceria com Éric Frédéric, maître de ballet e coreógrafo da Cia de Ballet Dalal Achcar, convoca 21 bailarinos para narrar em dois atos esse diálogo entre Rio e Bahia, entre a Ipanema dos anos 1960 e o bairro soteropolitano que batiza a obra. "Quando a Dalal me contou sobre Água de Meninos, esse presente que ela ganhou de Tom Jobim, e me chamou para coreografar junto com ela, foi uma gratidão imensa. A Dalal é apaixonada pela Bahia e eu também tenho essa região do Brasil no coração. Esse é um ballet que representa a cultura brasileira, tivemos um cuidado em trazer para a atualidade o Rio de Janeiro dos anos 60, a feira popular em Salvador, a amizade entre Dalal e Tom e, é claro, a importância da Bossa Nova", destaca Frédéric.
A dramaturgia coreográfica reconstrói a Ipanema onde Tom e Vinícius gestaram "Garota de Ipanema" no Bar Veloso, antes de atravessar simbolicamente o mar rumo à Salvador idealizada pela coreógrafa. Entre mitologia grega e orixás, Cronos e Iemanjá conduzem o espectador por uma fantasia poética que celebra a memória de um tempo em que arte e vida cotidiana se entrelaçavam nas esquinas cariocas. No palco, Claudia Mota, primeira bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, interpreta Dalal, enquanto Manoel Francisco encarna Tom Jobim e Irene Orazem dá vida à Madame Makarova, a professora russa que formou gerações de bailarinos brasileiros.
O repertório musical dialoga com a partitura original de Jobim, incorporando composições como "Eu Preciso de Você", "Água de Beber" e "Quebra Pedra", além de incluir "Canto de Yemanjá" de Baden Powell, "Pescaria" e "Você Já Foi à Bahia" de Dorival Caymmi, obras de Pixinguinha e, inevitavelmente, "Garota de Ipanema". São 23 músicas que costuram a narrativa de uma época em que a cultura brasileira se reinventava, buscando uma síntese entre erudito e popular, entre a tradição ocidental e as raízes afro-brasileiras.
A trajetória de Dalal Achcar se confunde com a história do ballet no Brasil. Diretora do Ballet do Theatro Municipal e duas vezes presidente da Fundação Theatro Municipal, ela coreografou montagens que a revista americana Newsweek considerou referência mundial e lançou bailarinos como Marcelo Gomes, Ana Botafogo e Roberta Marques para carreiras internacionais. Conviveu com Di Cavalcanti e Burle Marx, que assinaram cenários de seus espetáculos, e teve Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes escrevendo libretos especialmente para suas criações. Agora, ao retomar a coreografia depois de duas décadas, Dalal fecha um ciclo iniciado quando o maestro da Bossa Nova sentava ao piano de sua escola para testar acordes que mudariam a música brasileira.
SERVIÇO
ÁGUA DE MENINOS
Cidade das Artes Bibi Ferreira (Av. das Américas, 5300 - Barra da Tijuca)
22, 27 e 28/11, 4 e 5/12 (20h30) | 29/11 e 6/12 (16h e 20h30) | 23 e 30/11 e 7/12 (16h)
Ingressos entre R$ 50 e R$ 25 (meia) e R$ 140 e R$ 70 (meia)