Por: Affonso Nunes

De: Tom Para: Dalal

Grande dama do ballet brasileiro, Dalal Achcar exibe a partitura original produzida por Tom Jobim com arranjos de Radamés Gnatalli e que finalmente ganha coreografia | Foto: Divulgação

Dalal Achcar e Éric Frédéric coreografam trilha inédita de Tom Jobim que permaneceu esquecida desde os anos 1960

Em uma gaveta da coreógrafa Dalal Achcar dormia, há mais de seis décadas, um tesouro: uma partitura que Tom Jobim compôs especialmente para ela nos anos 1960, jamais apresentada ao público. Fruto de um tempo em que a Bossa Nova vivia sua efervescência e o ballet brasileiro buscava uma identidade nacional, "Água de Meninos" finalmente será encenada com estreia nesta sábado (22) na Cidade das Artes. 

Uma encomenda de 60 anos

Ensaio de 'Água de Meninos', uma criação de Dalal Achcar e Éric Frédérica partir da trilha composta por Tom Jobim | Foto: Divulgação

Dalal Achcar vasculha suas memórias e nos conta a história de "Água de Meninos". Tom era frequentador assídeuo da escola de ballet que a coreógrafa mantinha em Ipanema. O Maestro Soberano gostava de testar melodias ao piano entre uma aula e outra até que certa Dal encomendou ao amigo uma trilha para um espetáculo inspirado em Salvador. O compositor entregou seis faixas orquestradas por Radamés Gnattali, mesclando composições próprias e parcerias com Vinícius de Moraes a ritmos baianos, capoeira e referências a Dorival Caymmi e João Gilberto. Mas a montagem nunca aconteceu.

"Mostrar para o Brasil a riqueza que temos em termos de música, de dança e de manifestações populares é magnífico, ainda mais nos dias de hoje em que tudo é digital. Reviver o Tom, que foi quem popularizou a música brasileira no mundo inteiro, é uma forma de fazer essa nova geração se dar conta da riqueza dos artistas brasileiros que marcaram época", vibra a coreógrafa, que aos 15 anos começou a dançar sob tutela de Natália Makarova e, aos 18, fundou a Associação de Ballet do Rio de Janeiro.

A montagem, assinada em parceria com Éric Frédéric, maître de ballet e coreógrafo da Cia de Ballet Dalal Achcar, convoca 21 bailarinos para narrar em dois atos esse diálogo entre Rio e Bahia, entre a Ipanema dos anos 1960 e o bairro soteropolitano que batiza a obra. "Quando a Dalal me contou sobre Água de Meninos, esse presente que ela ganhou de Tom Jobim, e me chamou para coreografar junto com ela, foi uma gratidão imensa. A Dalal é apaixonada pela Bahia e eu também tenho essa região do Brasil no coração. Esse é um ballet que representa a cultura brasileira, tivemos um cuidado em trazer para a atualidade o Rio de Janeiro dos anos 60, a feira popular em Salvador, a amizade entre Dalal e Tom e, é claro, a importância da Bossa Nova", destaca Frédéric.

A dramaturgia coreográfica reconstrói a Ipanema onde Tom e Vinícius gestaram "Garota de Ipanema" no Bar Veloso, antes de atravessar simbolicamente o mar rumo à Salvador idealizada pela coreógrafa. Entre mitologia grega e orixás, Cronos e Iemanjá conduzem o espectador por uma fantasia poética que celebra a memória de um tempo em que arte e vida cotidiana se entrelaçavam nas esquinas cariocas. No palco, Claudia Mota, primeira bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, interpreta Dalal, enquanto Manoel Francisco encarna Tom Jobim e Irene Orazem dá vida à Madame Makarova, a professora russa que formou gerações de bailarinos brasileiros.

O repertório musical dialoga com a partitura original de Jobim, incorporando composições como "Eu Preciso de Você", "Água de Beber" e "Quebra Pedra", além de incluir "Canto de Yemanjá" de Baden Powell, "Pescaria" e "Você Já Foi à Bahia" de Dorival Caymmi, obras de Pixinguinha e, inevitavelmente, "Garota de Ipanema". São 23 músicas que costuram a narrativa de uma época em que a cultura brasileira se reinventava, buscando uma síntese entre erudito e popular, entre a tradição ocidental e as raízes afro-brasileiras.

A trajetória de Dalal Achcar se confunde com a história do ballet no Brasil. Diretora do Ballet do Theatro Municipal e duas vezes presidente da Fundação Theatro Municipal, ela coreografou montagens que a revista americana Newsweek considerou referência mundial e lançou bailarinos como Marcelo Gomes, Ana Botafogo e Roberta Marques para carreiras internacionais. Conviveu com Di Cavalcanti e Burle Marx, que assinaram cenários de seus espetáculos, e teve Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes escrevendo libretos especialmente para suas criações. Agora, ao retomar a coreografia depois de duas décadas, Dalal fecha um ciclo iniciado quando o maestro da Bossa Nova sentava ao piano de sua escola para testar acordes que mudariam a música brasileira.

SERVIÇO

ÁGUA DE MENINOS

Cidade das Artes Bibi Ferreira (Av. das Américas, 5300 - Barra da Tijuca)

22, 27 e 28/11, 4 e 5/12 (20h30) | 29/11 e 6/12 (16h e 20h30) | 23 e 30/11 e 7/12 (16h)

Ingressos entre R$ 50 e R$ 25 (meia) e R$ 140 e R$ 70 (meia)