Por: Affonso Nunes

Mitologia e resistência feminina conectadas

O espetáculo de dança 'Manifesto Elekô' volta aos placos cariocas. Sua narrativa é centrada na figura de Obá, orixá feminina símbolo de resistência | Foto: Fernando Souza/Divulgação

A dança afro-brasileira ganha nova dimensão poética e política com o retorno de "Manifesto Elekô" aos palcos cariocas. O espetáculo da Cia Clanm de Danças Negras estabelece um diálogo singular entre a mitologia yorubana e as vivências contemporâneas das mulheres negras, utilizando a figura da orixá Obá como fio condutor de uma narrativa que celebra resistência e conquistas. A montagem, que estreou durante a pandemia, retorna reformulada, ampliando sua reflexão sobre os novos espaços de protagonismo ocupados pelas mulheres negras na sociedade brasileira.

Sob a direção geral de Fábio Batista, a obra transcende a representação do sofrimento para enfatizar a trajetória de superação e liderança. "Obá sai de um sofrimento extremo e chega ao generalato de um exército, ocupando o mais alto escalão da proteção das mulheres. Queremos mostrar que, assim como ela, suas contemporâneas também estão percorrendo esse caminho", explica o diretor.

Esta abordagem reflete uma mudança de perspectiva no teatro negro contemporâneo, que busca equilibrar a denúncia das violências com a celebração das conquistas e da potência criativa da comunidade negra. Desta forma, o espetáculo articula elementos cênicos que dialogam com a tradição afro-brasileira e a contemporaneidade.

Sete bailarinas e seis músicos compõem um conjunto que utiliza cantigas autorais em yorubá e bantu, criando uma sonoridade que conecta ancestralidade e presente. A escolha por idiomas africanos demarca um posicionamento claro de valorização das matrizes culturais africanas, frequentemente invisibilizadas nos palcos.

Considerada a orixá mais retinta do panteão yorubano, Obá liderou Elekô, sociedade exclusivamente feminina de guerreiras e feiticeiras dedicadas à preservação de tradições e territórios. Sua educação masculinizada e domínio das armas a transformaram em símbolo de força e estratégia militar, características que o espetáculo transpõe para as lutas das mulheres pretas no Brasil.

Segundo o Censo 2022, mulheres negras são responsáveis pela gestão de 49,1% dos lares brasileiros, ressaltando um protagonismo econômico e familiar. "Elas ocupam um lugar de matriarcado, mas também estão em outros espaços", observa Batista, destacando que o elenco reflete essa diversidade, reunindo estudantes universitárias, lideranças de projetos sociais, professoras e outras profissionais.

O diretor enfatiza que a montagem "é construção política, reflexão, potencialização de mulheres negras, alerta social e festa".

A programação inclui ainda uma oficina de dança ministrada por Fábio Batista e as artistas do espetáculo, expandindo o projeto para além das apresentações e criando oportunidades de formação e intercâmbio cultural. Esta face pedagógica do projeto reforça o compromisso da companhia com a democratização do conhecimento sobre danças afro-brasileiras e suas conexões com a espiritualidade e a resistência cultural.

SERVIÇO

MANIFESTO ELEKô

Caixa Cultural - Teatro Nelson Rodrigues (Av. Almirante Barroso, 25, Centro)

De 17 a 19/7, quinta e sexta (19h) e sábado (18h)

Ingressos entre R$ 15 e R$ 20, com reserva de 20% dos ingressos para pessoas em situação de vulnerabilidade social, estudantes, professores, pessoas transgêneras e deficientes físicos