Titãs como Paul Thomas Anderson, Ryan Coogler e Jafar Panahi reafirmam sua relevância num ano cheio de experimentos de terror, com novo 'Superman' e com fenômeno chinês
Pela primeira vez na História das artes, a maior bilheteria de um ano cinematográfico, na marca do bilhão, não tem conexão alguma com os EUA. O título coube à China, de onde veio "Ne Zha 2 - O Renascer da Alma", animação cercada de ancestralidade que faturou US$ 2,1 bilhão. Não deu para Hollywood dessa vez, que só brilhou entre as cifras bilionárias, via Disney, com o noir animado "Zootopia 2" e com "Lilo & Stitch". O cinemão está chegando lá com mais uma frente: "Avatar: Fogo e Cinzas", o (tedioso) capítulo três da saga ecológica (e sem alma) de James Cameron. Se o dinheiro da Meca hollywoodiana não entrou como no passado, isso tem a ver, em parte, com o redesenho do mercado em prol do colorido global. Épicos da Índia e desenhos japoneses se impuseram como ímãs de plateia, ao mesmo tempo em que longas falados em línguas sem conexão alguma com povos anglo-saxônicos reinam nas grandes premiações do cinema. Confira a seguir os achados de 2025:
O filme do ano:
UMA BATALHA APÓS A OUTRA ("One Battle After The Other"), de Paul Thomas Anderson (EUA): Perfidia Beverly Hills é "A" personagem do ano. Teyana Taylor só precisa de um punhado de minutos em cena para se fazer onipresente, como vetor de empuxo na vida de homens que a amaram (ou a desejaram) capaz de expor racismos institucionalizados pelo país que elegeu Donald Trump, sem vergonha da xenofobia que ele encampa em sua política de extrema direita. Ela deixou uma filha, hoje adolescente (Chase Infiniti), pela qual o especialista em explosivos Pat (Leonardo DiCaprio, com jeitão de Grande Lebowski) zela com todo amor. O problema de Pat é o militar Lockjaw, um oficial imparável em seu predatismo contra grupos revolucionários (vivido por um assombroso Sean Penn). Ele teve um trelelê com Perfidia lá atrás e não se desgarrou da lembrança dela. Numa corrida para proteger sua filha, traduzida em tomadas vertiginosas, o personagem borracho de DiCaprio reinventa o conceito do looser numa sociedade pautada pelo lucro, assegurando ao realizador de cults como "Magnólia" (Urso de Ouro de 2000) e "Sangue Negro" (2007) mais uma obra-prima.
Confira a seguir o que mais se viu de imperdível de janeiro para cá:
Nosso ranking de 2025:
PECADORES ("Sinners"), de Ryan Coogler (EUA): O melhor filme do primeiro semestre, imbatível, é um exemplar do filão terror antirracista, o mesmo que nos deu "Corra!" (2017), com vampiros e a Ku Klux Klan a atazanar os juízos de dois empresários do ramo da Caninha da Roça que dão ao blues lugar de honra em seus negócios. Os negociantes em questão, irmãos gêmeos, têm o ator Michael B. Jordan, da franquia "Creed" (2015-2023), como intérpretes, numa atuação em (duplo) estado de graça. Quem dirige o astro nos papéis dos manos Moore, Elijah Smoke e Elias Stack, é o parceiro mais frequente dele, Coogler, o realizador de "Pantera Negra" (2018). Sua trama, decolonial, põe sugadores de sangue num bar de beira de estrada, no Mississippi pós I Guerra, na qual múltiplas ancestralidades egressas da África se manifestam. Seu faturamento beirou US$ 364 milhões.
LEVADOS PELAS MARÉS ("Feng Liu Yi Dai", no original/ "Caught by the Tides"), de Jia Zhangke (China): O ganhador do Prêmio da Crítica na Mostra de São Paulo no ano passado acompanha a jornada emocional de Qiaoqiao (papel da atriz Zhao Tao, atual companheira de Jia) em busca de um amor perdido, ao passo que, ao largo de sua cruzada sentimental, sua nação passa por mudanças vertiginosas. Ao longo de duas décadas — de 2000 ao início dos anos 2020 —, Qiaoqiao e Bin vivem um amor intenso e frágil na cidade chinesa de Datong, que sofre de dificuldades financeiras. Repentinamente, Bin vai embora para tentar a sorte em um lugar maior. Algum tempo depois, Qiaoqiao parte em uma jornada para reencontrá-lo. Esse tráfego gera, na tela, um amálgama de ficção e registro documental de harmonia plena.
MEU BOLO FAVORITO ("Keyke Mahboobe Man"), de Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha (Irã): Ganhador do Prêmio da Crítica e do Prêmio do Júri na Berlinale de 2024, esta trama romântica outonal do Irã assume dois septuagenários, uma viúva e um taxista, como eixos para devassar os garrotes morais de sua pátria. Mahin (Lily Farhadpour), que perdeu o marido há cerca de três décadas, criou (bem) a filha e hoje vive sozinha, aos 70 anos. Na mesma idade, o motorista Faramarz (Esmaeel Mehrabi) também lida com a solidão em seu dia a dia. Durante uma noite, num encontro casual, eles vão provar do gostinho do benquerer. Sua codiretora, a atriz e cineasta Maryam Moghadam, é conhecida aqui por "O Perdão" (2021).
DREAMS (SEX LOVE) ("Drømmer"), de Dag Johan Haugerud, e VALOR SENTIMENTAL ("Affeksjonsverdi"), de Joachim Trier (Noruega): Embora costume se destacar mais via Dinamarca e Suécia, as artes escandinavas se fizeram aplaudir (e premiar) este ano por vias norueguesas, vencendo a Berlinale e tomando Cannes de assalto. Haugerud foi o ganhador do Urso de Ouro da Berlinale de 2025 com este drama sobre a experiência do primeiro amor, que compõe uma trilogia com "Sex" e "Love", ambos de 2024. Seu enredo faz uma ode à literatura ao narrar angústias da aspirante a Clarice Lipector chamada Johanne (Ella Øverbye) no registro (em prosa) de suas fantasias sentimentais por uma mulher mais velha, que jamais a enxerga com desejo. Já Joachim conquistou o Grande Prêmio do Júri da Croisette ao narrar o acerto de contas familiar entre um cineasta à la Bergman, o realizador Gustav Borg (papel de um titânico Stellan Skarsgård) com as filhas Nora (Renate Reinsve) e Agnes (Inga Ibsdotter Lilleaas).
SUPERMAN, de James Gunn (EUA): Após "Guardiões de Galáxia" (2014-2023) e "Esquadrão Suicida" (2021), o nerd do momento da indústria audiovisual, famoso por uma dramaturgia debochada, reinventa o sobrevivente de Krypton, com o eficaz ator David Corenswet no papel central, usando Kal-El como alegoria para estrangeiros em diáspora. O sujeito que perdeu seu planeta cai na Terra, onde se faz um vigilante, em prol da Justiça. Apesar de seu altruísmo, sua origem "estrangeira" faz dele um incômodo para uma América que, num espelhamento da Era Trump, pratica a xenofobia como prática de estado. Seu Trump é um Lex Luthor brutal, bem diferente do jeitão Zé Pelintra celebrizado por Gene Hackman (no "Superman" de 1978), que atesta a excelência Nicholas Hoult. Destaque para Nathan Fillion, como o Lanterna Verde com cabelinho de cuia Guy Gardner, e para Pruitt Taylor Vince com o pai terreno de Kal-El.
CAIAM AS ROSAS BRANCAS! ("¡Caigan Las Rosas Blancas!"), de Albertina Carri (Argentina): O novo longa da diretora de "As Filhas do Fogo" (2018) tem o Brasil entre seus produtores. Na trama, Violeta (Carolina Alamino) fez um sucesso estrondoso com seu filme pornô lésbico amador, mas muito inventivo. Como resultado, ela foi contratada para escrever e dirigir uma versão um tanto mais convencional de seu cult. Suas opiniões sobre gênero e sobre cinema não se encaixam muito bem no ambiente mais profissional da produção audiovisual. Na vivência da inadequação, ela decide filmar com liberdade plena, numa viagem de carro, do sul de Buenos Aires a São Paulo.
A HORA DO MAL ("Weapons"), de Zachary Cregger (EUA): Até a personagem da tia má, a Sra. Gladys (papel de Amy Madigan), aparecer, espectadoras/es deste megassucesso de bilheteria (custou US$ 38 milhões e faturou US$ 267,5 milhões) agarram-se à cadeira e roem as unhas até à raiz, tentando perceber que diabo aconteceu ao grupo de alunos da professora Justine (Julia Garner). Um dia, ao chegar para dar aula, ela se dá conta de que 17 crianças desapareceram, restando apenas uma: o pequeno Alex (Cary Christopher). Ninguém sabe o que aconteceu com a gurizada, o que leva muitos pais, sobretudo o Sr. Archer Graff (Josh Brolin, monumental na sua atuação), a criarem rancor contra Justine e a duvidar da sua índole. Algo nas raias da feitiçaria vai se fazer notar ao largo do sofrimento dela, respingando (sangue) sobre um diretor de escola (Benedict Wong) e seu companheiro, expondo homofobia, sexismo e outras malévolas formas de exclusão.
A PRISIONEIRA DE BORDEAUX ("La Prisonnière De Bordeaux"), de Patricia Mazuy (França): Sensação da Quinzena de Cineastas do Festival de Cannes de 2024, este thriller perfumado de sororidade propõe um ensaio sobre alteridade no bastidor do universo carcerário. Isabelle Huppert interpreta Alma Lund, uma mulher de classe alta que vive sozinha desde a prisão do marido. Num dia de visita a ele, conhece Mina Hirti (Hafsia Herzi), uma jovem mãe que foi visitar o companheiro, mas, por questões burocráticas, não poderá vê-lo e deve voltar no dia seguinte. Ela mora longe - em uma cidade a três horas de distância. Alma simpatiza com ela e oferece estadia em sua casa. Começa aí uma amizade improvável, que toma contornos inesperados, num filme que discute violências econômicas.
SEM CHÃO ("No Other Land"), de Yuval Abraham, Basel Adra, Hamdan Ballal e Rachel Szor (Palestina): Um inventário geopolítico construído como um exercício de não ficção, esta produção foi coroada com o Oscar de Melhor Documentário, abrindo um debate sobre a rota do ódio no Oriente Médio. Nele, um ativista palestino filma sua comunidade sendo destruída pela ocupação de Israel. No processo, constrói uma improvável aliança com um jornalista israelense que quer se juntar à sua luta. Dessa aliança, surge um tocante ensaio documental.
FOI APENAS UM ACIDENTE ("Un Simple Accident"), de Jafar Panahi (Irã): No arranque dessa produção ganhadora da Palma de Ouro, o diretor de "O Balão Branco" (1996) segue num carro onde um casal tenta conter uma menininha em plena euforia, com seu boneco de pelúcia preferido. Uma colisão trava o veículo. A pequena tem medo do que se passa, mas o pai a acolhe, ainda que com severidade. Nesse início tenso, ocorre o tal "simples acidente" do título, que deflagra uma cruzada de revanche sem medo de exposições gráficas da violência. O pai entra num galpão para pedir ajuda e alerta um operário, Vahid, que parece reconhecer o som característico do seu andar manco, fruto de uma prótese na perna. No dia seguinte, Vahid bate na cabeça desse homem com uma pá antes de colocá-lo na parte de trás de sua van. Ali se dá uma cruzada de vingança contra as arbitrariedades de um regime opressivo.