RODRIGO FONSECA
Especial para o Correio da Manhã
Em seu empenho anual de diversificar a formação audiovisual de suas plateias com sua sessão Classiquíssimos, o Estação pôs sob sua ribalta, de janeiro a dezembro, cults que andavam fora do radar dos circuitos exibidores e de streamings de luxo como "Classe Operária" (1982), a ser exibido pelo NET Gávea, esta noite. A sessão será às 21h. A figura de um jovem Jeremy Irons a quebrar reboco de parede imortalizou "Moonlighting" (título original do longa-metragem), que saiu do Festival de Cannes com o Prêmio de Melhor Roteiro. Mais do que nos reaproximar do sumido Irons (visto, no exterior, faz pouco, em "Palestina 36"), a produção traz de volta ao convívio cinéfilo dos cariocas a genial figura do realizador e artista plástico polonês Jerzy Skolimowski. Aos 87 anos, ele tem um projeto novo, chamado "Angel of Death", para 2026.
O garoto enxaqueca Shia LaBeouf será seu protagonista. Aliás, o roteiro é dele também, e Jerzy comprou o projeto, com fome de brilhar. Em "Angel of Death", Shia vive um patologista judeu que foi obrigado pelo carrasco nazista Josef Mengele a participar de experimentos médicos no campo de concentração de Auschwitz durante a II Guerra.
Será difícil sair dessa recriação dos jugos hitleristas incólume, assim como não se sai ileso de "Classe Operária". Skolimowski - que visitou o Brasil em 2010, ao ganhar uma retrospectiva no Festival do Rio de então - sempre deixa cicatrizes. Ele renovou seu prestígio como cineasta, há três anos, graças à incansável carreira de seu mais recente experimento no posto de cineasta, "EO", hoje encontrável na plataforma MUBI.
"A última coisa que um artista deve fazer é ser chato. A penúltima, é se repetir, consciente de estar esgotado. A terceira é não pensar a força plástica do plano. A tela em branco onde nosso filme é projetado é igual a uma tela a se encher de tinta para ser exposta numa galeria. É um objeto que carece de nossa percepção de volume, de espaço, de fricção", disse Skolimowski ao Correio da Manhã quando atuou em "O Caravaggio Roubado" (2018).
Indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2023, "EO" é uma das aquisições de maior visibilidade do www.mubi.com, um streaming dedicado a narrativas autorais. Seu protagonista: um burro. Sua sina: sobreviver. Memórias da Polônia do fim dos anos 1930 e início dos anos 1940 fazem com que Skolimowski se interesse em falar, continuamente, sobre a arte de sobreviver. É o caso de "Classe Operária", que concorreu à Palma de Ouro.
Nele, o empregador polonês Nowak (Irons) leva um grupo de operários até Londres para oferecer mão de obra barata à uma base do governo. Ele é o único que sabe falar inglês e usa isso a seu favor, como uma ferramenta para controlar sua equipe, que enfrenta as tentações e solidão. Até que acontece uma intervenção militar na Polônia e Nowak precisa encarar uma situação bem mais difícil do que esperava. São as intervenções do acaso, de que tanto gosta Skolimowski - um diretor autor que funde artes plásticas, cinema e um olhar áspero sobre a mesquinharia.
Filmes premiados, mas hoje esquecidos, como "Ataque em Alto-Mar" (1985), "O Sucesso É A Melhor Vingança" (1984) e "Barreira" (1966) garantiram ao artista plástico, cineasta e (vez por outra) ator um lugar perene de destaque nos maiores festivais do mundo. Conta ainda com a simpatia de Hollywood, onde emprestou seu carisma à polonesa aos elencos de "Marte Ataca!" (1995) e "Os Vingadores" (2012). São 66 anos de carreira. Sua obra é das mais festejadas da Polônia, terra de gigantes como Andrzej Wajda, Krzysztof Kieslowski, Agnieszka Holland e Roman Polanski, seu colega de juventude e parceiro no cult "Faca na Água", do qual foi dialoguista. Ele trabalhou com o antigo camarada de classe ainda em "The Palace" (2023). No currículo de glórias de Skolimowski, "EO" é um ponto de reafirmação profissional. Trata-se de uma triste fábula de denúncia à violência contra os animais.
Numa combinação de um pleito militante bem defendido e de um vigor estético mesmerizante, essa sua narrativa de timbre fabular ganhou o Prêmio do Júri de Cannes e segue angariando fãs mundo afora. Seu título se pronuncia como uma onomatopeia, pois é uma referência sonora ao zurro que os asnos fazem (aquele "inhóóó inhóóó"). Na tela, em sua narrativa, seguimos os galopes de um burrico, cujo calvário comove espectadores.
Ganhador do Urso de Ouro da Berlinale, em 1967, com "Le Départ", Skolimowski explicou seu interesse por heróis inusitados em sua passagem pelo Festival do Rio. Na ocasião, ele contou ao Correio que não gostaria de ficar limitado às praias de Copacabana. Almejava ir à Zona Norte, até Madureira.
"Um país só se desnuda em toda a sua verdade geopolítica na voz de sua periferia. Eu fico curioso com a imagem do subúrbio do Rio, pois a realidade de uma cidade fascinante como essa deve estar nas áreas não turísticas, onde é possível ver esse povo como ele é", disse, à época, o octogenário realizador. "Se existe aquilo que chamam de 'humanismo', que nada mais é do que um misto de perplexidade com empatia, o meu é movido por figuras marginais".