'3 Atos de Moisés' expande a força do cinema documental musical brasileiro ao narrar as lutas de um pianista mineiro para se firmar na arte num binômio de destreza e poesia
Vertente mais bem-sucedida do cinema de não ficção do país quando se pensa na adesão (e na mobilização sentimental) das plateias há exatamente 20 anos, desde o fenômeno "Vinícius" (2005), o cinema documental musical brasileiro ganha um reforço afetivo neste fim de semana com a estreia de "3 Atos de Moisés". Com direção de Eduardo Boccaletti, a produção narra os feitos artísticos do pianista Moisés Mattos, mineiro de Juiz de Fora.
Desde novinho, ele cultivou uma determinação sem igual para superar preconceitos inerentes à origem extremamente humilde, a fim de se tornar um dínamo do piano. Formou-se pela Universidade de Bremen, na Alemanha, e conseguiu tocar em grandes salas da Europa. O documentário é estruturado em três pilares que refletem as fases mais significativas de sua vida: seu início em Juiz de Fora, sua trajetória em terras alemãs e seu retorno triunfante à sua cidade natal, a cidade mineira de Juiz de Fora. O filme é produzido pela É Pra Ontem Filmes e distribuído pela Pipa Pictures.
"A história de Moisés é mais a de um amor obstinado, desses que não admitem alternativa, do que de um enfrentamento heroico. Ele nunca teve um plano B, porque transpareceu sempre muita certeza do que queria, antes mesmo que a vida permitisse que ele tocasse um piano de verdade", explica Boccaletti ao Correio da Manhã.
Dividido em torno de momentos distintos da jornada de Moisés pela música, o filme começa com o pianista relembrando seu périplo de resiliência e determinação para aprender a tocar o instrumento. A narrativa entrecortada entre Brasil e Alemanha - sempre em movimento, assim como seu protagonista - nos leva ao segundo ato, mostrando como ele, que aprendeu Alemão por conta própria ainda em Juiz de Fora. Ao estudar o idioma, conseguiu se mudar para a Europa e continuar seus estudos no país natal de seus maiores ídolos musicais. Mesmo enfrentando numerosos desafios na Alemanha, Moisés Mattos nunca parou: formou-se em Bremen, aprendeu seis novos idiomas e iniciou sua carreira como solista, tornando-se um símbolo de persistência, perseverança e acima de tudo, amor pela música. Equilibrando aulas, estudos e concertos diários, sua carreira se consolidou na terra dos grandes compositores, mas ainda havia um desejo a ser realizado: um recital em Juiz de Fora, sua cidade natal.
"Em vez de reduzir sua trajetória a uma fábula de resistência, o filme se aproxima daquilo que eu vi de mais puro nele: a fidelidade absoluta de uma criança ao seu sonho", diz Boccaletti. "É por isso que vemos Moisés, ainda menino, desenhar um piano numa bancada de madeira para poder tocar o instrumento que não tinha. Esse gesto tão simples e gigantesco é o coração do filme e prova que a música já existia nele antes mesmo de ele ter acesso ao instrumento".
O terceiro e último ato do filme mostra o retorno às origens. Depois de mais de 15 anos no exterior, o pianista, que um dia desenhou as teclas pretas e brancas do piano em um banco de madeira, enfim se apresenta pela primeira vez no Cine-Theatro Central, o maior palco de sua cidade.
"O filme revela um Brasil com um brilho sem igual, aquele que persiste apesar da falta crônica de apoio, incentivo ou estruturas. É o Brasil que avança e encanta, mesmo quando tudo ao redor empurra para trás", diz Boccaletti. "Também é o Brasil que, todos os dias, perde talentos: pianistas, bailarinos, cientistas, artesãos, atletas, pela violência ou pela ausência de oportunidades. Moisés, com sua travessia improvável, encarna os dois lados dessa moeda: o milagre da persistência e o "se" do que teríamos a mais em números de talentos caso as condições favorecessem. Acho que o maior desafio desse filme não é simplesmente filmar dedos ágeis correndo pelo teclado, nem enquadrar a virtuosidade técnica. O verdadeiro desafio é encontrar a emoção do personagem e fazer com que ela atravessa cada imagem e todo o arco narrativo. A música clássica é, por natureza, uma arte muito complexa: sua beleza está tanto nas notas, quanto nos espaços entre elas. Moisés entende isso intuitivamente. Ele traz isso com a força de quem toca como quem interpreta a vida. Suas dificuldades, não deixaram ele mais fechado, pra nossa sorte. Elas se transformaram nessas sutilezas".