Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Aïssa Maïga: 'Existem vários níveis de sororidade'

Aïssa Maïga, atriz francesa | Foto: Rodrigo Fonseca

Seria mera especulação supor o nome da atriz que ganhará o prêmio de melhor intepretação na 22ª edição do Festival de Marrakech neste sábado, mas não há dúvida de que a francesa Aïssa Maïga sairá do Marrocos com seu status de estrela fortalecido. À frente de "Paraíso Prometido" ("Promis Le Ciel"), de Erige Sehiri, ela dispara como celebridade na África árabe. Com origens familiares no Mali e no Senegal, ela empresta carisma e talento à diretora de "Debaixo das Figueiras" (2021) para interpretar uma ex-jornalista que abraçou a fé virou uma pastora. Em meio a suas pregações, ela transforma seu lar num abrigo informal para mulheres que encaram as asperezas do cotidiano. A chegada de uma órfã vai mudar a rotina das adultas que moram ali e testar a fé da protagonista no Altíssimo.

Indicada ao César (o Oscar francês) por "Bamako" (2007), Aïsha já dirigiu três filmes, entre ele o badalado "Marcher Sur L'Eau" (2021). Filmou com artesões autorais do Velho Mundo e da África como Alain Gomis, Michael Haneke, Michel Gondry e Cédric Klapisch, que há 20 anos deu a ela papel de destaque em "Bonecas Russas" (2005), um sucesso indie no Brasil.

Na entrevista a seguir, ela fala ao Correio da Manhã de intolerâncias e resistências.

Ainda que o foco de "Paraíso Prometido" seja a conexão entre mulheres, o tema do racismo, na Europa e na África árabe é uma questão sempre que o filme é exibido. Como você avalia as práticas racistas na França hoje?

Aïssa Maïga - Existe um problema evidente com a ascensão da extrema direita — algo que faz parte de um movimento global. Em momentos de crise econômica, as sociedades tendem a procurar culpados: o muçulmano, o estrangeiro, ou aquele que "parece" estrangeiro. No cinema, essas questões avançam e recuam ao mesmo tempo. Há posicionamentos fortes, mas também muitas resistências. A França é um país profundamente mestiço — talvez o mais da Europa, ao lado do Reino Unido —, mas tem enorme dificuldade em assumir essa realidade. Falta um trabalho empenhado de memória sobre as razões históricas que trouxeram tantas populações imigrantes ao país: trata-se da nossa história colonial. Com um autêntico trabalho de memória e um combate mais firme às discriminações, a França poderia ser muito mais rica — em um sentido profundo — a partir da sua própria história.

Que vetores culturais de africanidades norteiam a abordagem de "Paraíso Prometido" para a sororidade?

É muito interessante que você coloque a questão dessa forma, porque existem vários níveis de sororidade. Há a sororidade política — uma solidariedade organizada entre mulheres que lutam por direitos — e há a sororidade afetiva, que nasce das afinidades pessoais e das experiências partilhadas. No contexto africano, isso ganha ainda mais profundidade. As mulheres são muito organizadas. Eu sou do Mali e do Senegal, e tanto na educação quanto no lar - na comunidade ou até mesmo em nível nacional -, as associações de mulheres são extremamente estruturadas, sejam elas agricultoras, empresárias ou políticas. Quando migram, essa organização ressurge naturalmente. Em situação de exílio, elas recriam sistemas de apoio para conseguir sobreviver.

De que forma se deu a sua conexão com a diretora Erige Sehiri nas filmagens?

Fui escolhida apenas duas semanas antes das filmagens — foi tudo muito apertado. Tudo começou com um e-mail. Eu estava no celular, respondi imediatamente, ela respondeu logo em seguida, e dois minutos depois já estávamos no Zoom — sem termos nos conhecido pessoalmente antes. E isso, não sei exatamente por quê, já nos colocou em uma energia muito fluida. Erige carregava esse tema da sororidade há mais de dois anos. Além disso, tem essa postura de jornalista investigativa, que lhe permite mergulhar nos assuntos, conhecer profundamente as pessoas e compreender a fundo aquilo sobre o que vai falar no filme, para extrair disso algo muito claro.

Como foi o procedimento de construção da personagem: uma repórter que troca o Jornalismo para se firmar como pregadora religiosa, dividindo a casa com duas mulheres?

Havia a dimensão religiosa da personagem: uma pastora evangélica. É uma religião que eu desconhecia completamente. Havia também o fato de ela ser uma ex-jornalista, como a própria diretora é. Erige confiou a mim uma mulher com um passado que ela esconde, na convicção de que as almas podem sustentar vidas. Tudo nessa construção narrativa ocorreu muito rápido. Eu vinha de Paris e, quando cheguei a Túnis, encontrei imediatamente uma pastora real — Marie-Noël — muito conhecedora da teologia e extremamente carismática, em quem me inspirei. Também conheci os fiéis da igreja. Eles não eram figurantes comuns. Aquela turma pertencia, de fato, àquela congregação. Todos me explicaram que, para eles, era evidente que eu havia sido "escolhida". Passaram a me chamar de "Mamãe Pastora" já no primeiro dia. Fiquei surpresa, mas essa validação deles ajudou enormemente no trabalho.