Às vésperas de seu encerramento, a maratona cinéfila de Marrakech consagra miradas poéticas sob as inquietações planetárias da contemporaneidade
Tem feito por volta de 16 graus na noite do Marrocos, com pancadas de chuva ocasionais (bem frias), num contraste com a sensação térmica em torno de 22 graus nas metrópoles daquele país, onde o calor tem se concentrado nas telonas do Palácio do Congresso e em salas de exibição como o Coliseu. É por elas que se espalha a diversidade do 22° Festival de Marrakech, iniciado na sexta-feira passada com "63 Horas de Pânico" ("Dead Man's Wire"), thriller de Gus Van Sant, com Al Pacino a encarnar o capitalismo selvagem. Sábado começou a competição anual do evento, que encontra no drama antirracista "Laundry", da África do Sul, seu mais forte competidor até agora, a julgar pelo burburinho do público e da crítica. Resta saber o que pensa o júri, que conta com Bong Joon Ho, o diretor sul-coreano oscarizado por "Parasita" (2019), em sua presidência. Karim Aïnouz, realizador cearense laureado em Cannes por "A Vida Invisível" (2019), é jurado no evento, que termina neste sábado, com a entrega de troféus e a projeção de "Palestina 36".
O Correio da Manhã elenca a seguir o que Marrakech viu de melhor.
"DERRIÈRE LES PALMIERS", de Meryem Benm'Barek (Marrocos): A premiada diretora de "Sofia" (2018) nos sai com uma espécie de "Selva de Pedra" que faria Janete Clair aplaudir de pé. Seu roteiro decorre em Tânger, onde o jovem Mehdi (Driss Ramdu) vê a sua relação com Selma (Nadia Kounda) abalada quando conhece Marie, uma francesa rica (Sara Giraudeau) cujos pais compraram uma luxuosa vivenda no Norte de África. Atraído pela sua vida mundana, o rapaz afasta-se de Selma e finge ignorar que as suas escolhas terão consequências.
"LA MAISON DES FEMMES", de Melisa Godet (França): Longa-metragem de estreia da escritora do romance "Les Augustines" na direção. Karin Viard e Latetita Dosch são parceiras valiosas em sua entrada no cinema. Ela narra o dia de um lar de acolhimento onde cuidam-se mulheres vítimas de violência. Se em outros lugares elas são ameaçadas, agredidas, violadas, mutiladas e têm o seu sofrimento ignorado, naquele espaço são ouvidas, apoiadas, ajudadas e acreditadas. Um time de profissionais irá ampará-las até que possam se reerguer, em equipe, mesmo que isso signifique arriscar o próprio equilíbrio pessoal.
"MY FATHER AND QADDAFI", de Jihan K (Líbia): O filme mais sensível entre todos os títulos da competição já exibidos (são 13 ao todo; faltam quatro) se alinha com a corrente documental que foi apelidada de "álbum de família". É uma vertente na qual cineastas falam de parentes (como "Elena", de Petra Costa, para expor feridas nacionais ou universais). Em sua eletrizante narrativa, Jihan K. reconstrói a figura de um pai de quem tem poucas lembranças. Mansur Rashid Kikhia, advogado especialista em direitos humanos, foi ministro das Relações Exteriores da Líbia e embaixador do país junto às Nações Unidas. Depois de servir sob o regime brutal de Muammar Kadhafi, ele abandona o governo e torna-se o líder da oposição pacífica. Para muitos, chegou até mesmo a ser visto como um sucessor em potencial de Kadhafi. Mas, em 1993, ele desaparece misteriosamente de seu hotel no Egito. Um crime se desenha ali.
"MÃOS À OBRA" ("A pied d'œuvre"), de Valérie Donzelli (França): O filme ganhador do prêmio de Melhor Roteiro do Festival de Veneza, em setembro, arranca uma atuação impecável de Bastien Bouillon. Ele encarna um fotógrafo de sucesso que abandona tudo para se dedicar à escrita, a fim de atender a um chamado da literatura, e descobre a pobreza. A duras penas ele se dá conta de que concluir um texto não significa ser publicado, ser publicado não significa ser lido, ser lido não significa ser apreciado, ser apreciado não significa ter sucesso, ter sucesso não garante fortuna. Essa produção pode ser vista neste fim de semana em terras brasileiras, no Festival do Cinema Francês no Brasil.
"SOPHIA", de Dhafer L'Abidine (Tunísia): Um thriller eletrizante do ator tunisiano que fez séries na Netflix e filmes em Hollywood. Sua trama carrega ecos de melodrama, só que opta pelo suspense. Desafiando a autoridade do pai, Emily deixa Londres rumo a Túnis com a esperança de permitir que sua filha, Sophia, volte a se aproximar de Hicham, o marido de quem está separada. Mas o que deveria ser um reencontro delicado transforma-se em um pesadelo quando Sophia desaparece. Mentiras, segredos e traições começam então a rachar as bases dessa família destruída. Mergulhada em uma corrida desesperada contra o tempo, Emily vê seu mundo ruir enquanto luta para reencontrar a filha.
"CALLE MÁLAGA", de Maryam Touzani (Marrocos): Coqueluche por onde passa, desde sua estreia no Festival de Veneza, esta crônica afetuosa sobre recomeços assegura à diva espanhola Carmen Maura um de seus melhores papéis. Ela vive María Ángeles, imigrante ibérica de 79 anos que mora sozinha em Tânger e aprecia sua rotina diária. No entanto, sua vida vira do avesso quando a filha chega de Madri para vender o apartamento onde sempre viveu. Determinada a ficar, María faz tudo o que pode para recuperar sua casa e seus pertences e, inesperadamente, redescobre o amor e a sensualidade. Indicado a troféus no Cairo, o longa foi coroado com as láureas de Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz em Mar Del Plata, na Argentina.
"HOMEBOUND", de Neeraj Ghaywan (Índia): Unha e carne desde os bancos do liceu, Chandan Kumar (o ótimo Vishal Jethwa) e Mohammed Shoaib (Ishaan Khatter) são a bússola deste estudo sobre parcerias em ambientes de escassez financeira. A covalência da amizade é plena entre eles, numa lealdade inquebrantável. O companheirismo que os aproxima - e jamais chega a ser arranhado, nem com a pandemia da covid-19 - é o eixo afetivo que areja a frequência etnográfica da ficção de Neeraj, consagrado por "Masaan" (2015). A volta dele às telas lavra o arado do chamado "heroísmo do rendimento" - estrutura dramática herdada da literatura do século XIX, na qual a jornada passa por entreveros econômicos - com sementes de melodrama. A pobreza abate-os, mas não os separa.
"TUMMY TOM AND THE LOST TEDDY BEAR" ("Dikkie Dik En De Verdwenen Knuffel"), de Joost van den Bosch & Erik Verkerk (Holanda): Taí o tipo de filme perfeito para se enredar crianças de dentes de lente nas manhas do cinema. O enredo assume como protagonista o felino Tom, um pequeno gato ruivo dos mais travessos. É curioso e alegre… e um pouco impulsivo. Quando perde o seu peluche favorito — aquele com o qual dorme todas as noites desde que era um gatinho — é um verdadeiro desastre. Não há hipótese de ficar de braços cruzados: tem de o encontrar. Felizmente, Tom pode contar com o Ratinho, o seu melhor amigo, para o acompanhar nas aventuras que se seguem. E assim partem numa expedição alucinada.
"O BOLO DO PRESIDENTE" ("The President's Cake"), de Hasan Hadi (Iraque): Laureada em Cannes com o Prêmio de Júri Popular da Quinzena de Cineastas e com a Caméra d'Or de 2025, esta aventura foi eleita o melhor filme da Mostra de São Paulo, em outubro. Sua protagonista é Lamia (Banin Ahmad Nayef), uma estudante de 9 anos que precisa cumprir a tarefa imposta por sua escola: preparar um bolo. Não se trata de um bolo qualquer. É um bolo de aniversário para... Saddam Hussein (1937-2006), o então líder de sua pátria. Estamos no início dos anos 1990, na era Bush (pai), e está chegando o dia 28 de abril, data em que o Iraque era obrigado (por lei) a celebrar o aniversário de seu governante, como se fosse uma festa cívica. Em meio a essa comemoração, Lamia, que é paupérrima, tem que fazer o tal doce do título. Um galo é seu companheiro de jornada.
"A CERCA" ("Cri des Gardes"), de Claire Denis (França): A aclamada realizadora de "Beau Travail" (1999) dialoga com a dramaturgia de Bernard-Marie Koltès (1948-1989) a partir da peça "Combat de Nègre et de Chiens", escrita em 1979, mas só encenada em 1982. Num canteiro de operários num local não especificado da África, Horn, o chefe da obra (vivido por Matt Dillon), e Cal, um jovem engenheiro (Tom Blyth), dividem o alojamento atrás da porta dupla das instalações. Leonie, namorada de Horn (Mia McKenna-Bruce), chega para se juntar a eles na noite em que um homem (interpretado por Isaach de Bankolé) aparece junto à cerca. Seu nome é Alboury. Como um espectro na escuridão, ele exige o corpo de seu irmão, que morreu naquele mesmo dia na obra. A produção disputou a Concha de Ouro de San Sebastián.