Festival marroquino debate a manipulação midiática em diferentes latitudes, apostando em documentário de Raoul Peck sobre o livro '1984', onde nasceu o conceito do 'Big Brother'
Controle midiático é um dos assuntos centrais do 22° Festival de Marrakech, a se destacar o filme de abertura, "63 Horas de Pânico" ("Dead Man's Wire"), de Gus Van Sant, no qual um sequestro vira o estopim para um jogo de controle social envolvendo rádio e TV. O papel dos media em prol de regimes totalitários eclode nas coças que o mundialmente premiado épico "Era Uma Vez Em Gaza" dá nas formas como se noticia as lutas do Oriente Médio em prol da liberdade palestina. A sessão dessa produção dos irmãos Tarzan & Arab Nasser, agendada para a noite desta segunda, é das mais concorridas de todo o evento marroquino até aqui. Mas é na terça que a maratona cinéfila do Marrocos recebe o mais afiado longa-metragem de 2025 acerca das deformações inerentes à desinformação: o ensaio documental "Orwell: 2 2=5", do haitiano Raoul Peck. O livro "1984" está em seu foco.
Prenunciado pela literatura há 76 anos, o cataclisma coercitivo do romance de George Orwell (1903-1950), no qual uma inteligência digital vigia cada pobre diabo deste planeta, ganha novos (e mais alarmados) ecos na arte, a julgar pela narrativa de Peck. Ela se constrói em sintonia com um momento da História em que o ChatGPT e miolos eletrônicos afins passam a substituir gente de carne e osso nas seleções laborais. Os algoritmos de redes sociais que mapeiam nossos desejos sem a nossa demanda ou autorização são uma evidência de que o Grande Irmão (o Big Brother) criado por Orwell nas páginas de "Nineteen Eighty-Four" (1949) extrapolou a ficção.
Indicado ao Oscar por "Eu Não Sou Seu Negro" (2016), o cineasta alarga o conceito de biografia ao partir de Orwell e da sua distopia literária para devassar os estratagemas midiáticos para reduzir as mentes pensantes a gado. A palavra ao lado, "gado", tem ainda mais peso quando se sabe que o romancista em foco escreveu "A Revolução dos Bichos" (1945), no qual um porco chamado Napoleão resolve controlar os demais animais.
No longa de Peck, Orwell é classificado como um branco britânico fora de seu habitat, nascido numa Índia de segregação feroz no seu regime de castas. A escolha dele como eixo é narrativo uma forma de Peck entender como o Velho Mundo instaurou a intolerância como práxis de hierarquização, sem perceber que estava a ser devorado por uma besta faminta que povoou (os EUA) com o intuito de expandir os seus domínios e disseminar as suas línguas.
"Num espelho da manipulação midiática de '1984', os documentários hoje passam por uma nova cilada com o streaming. É verdade que a demanda pelo formato documental aumentou, mas as plataformas impõem um processo de seleção que se pauta por critérios comerciais", disse Peck, em entrevista ao Correio da Manhã em Cannes, na feitura de "Orwell: 2 2=5". "O que importa na demanda são biografias de celebridades e histórias sobre crimes reais. O documentário que eu faço se pauta pela criação. Eu lido com arquivos, porque meu papel político é recuperar a História".
No cinemão, inclusive em terras brasileiras, o filmaço "O Sobrevivente" ("The Running Man"), de Edgar Wright, é mais uma vitrine de discussão sobre os abusos das telecomunicações.