Astro alemão morreu domingo, aos 81 anos, imortalizado nas sessões de 'O Agente Secreto' e eternizado em cerca de 275 trabalhos em clipes, filmes e minisséries pela irreverência
Cada cinéfilo deste mundo tem um Udo Kier para chamar de seu. É muito Udo para pouco cinema, talvez por que, ao longo dos 275 trabalhos atribuídos ao ator alemão - nascido em 14 de outubro de 1944, em Colônia, e morto no domingo, em Palm Springs, nos EUA, aos 81 anos -, ele tenha sido plurais de si mesmo. Para uns ele é um dos Senhores das Trevas da Marvel, o vilão Dragonetti, vítima de uma tortura excruciante em "Blade, o Caçador de Vampiros" (1998), onde tem os caninos arrancados a boticão, antes de arder à luz do sol. Para outros, seu nome será mais lembrado pelas parcerias com Lars von Trier ("Melancolia") e Gus Van Sant ("Garotos de Programa").
Para o Brasil, sua imagem, por mais diversa que seja, será sempre associada ao caçador Michael de "Bacurau", que saiu de Cannes com o Prêmio do Júri, em 2019. Durante a pandemia, o nordestern de Kleber Mendonça Filho passou na "Tela Quente" da Globo com dublagem, pois parte do elenco era estrangeira e falava noutros idiomas. No português de "versão brasileira", que uniformizava os falares, Udo ganhava o vozeirão de Mauro Ramos, na composição do líder de um grupo de gringos armados (a maioria, americanos) a caçar o povo de um Brasil aguerrido, que dava o troco.
O papel sintetizava as invasões bárbaras do capital estrangeiro. Este ano, ele voltou a ceder seu talento para o cinema nacional, uma vez mais sob a direção de Kleber, no fenômeno pop de 2025, "O Agente Secreto", que chega a um milhão de pagantes já, já. Interpreta Hans, cidadão germânico que sofre com o achaque de um delegado e seus asseclas no Recife de 1977. É judeu, mas é tachado de nazista.
Em sua fidelidade autoral ao astro, o diretor pernambucano escreveu em seu Instagram: "Udo Kier, para sempre na memória. Não existirá nunca jamais outra pessoa e artista como Udo Kier. Que Senso de humor, que bom gosto, que alegria de viver".
Nas oito décadas em que foi raio, estrela e luar neste planeta, Udo Kier filmou de um tudo a partir de "La Stagione Dei Sensi" (1969). Na Alemanha, seu lar, trabalhou com o divo do melodrama, Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) em "A Terceira Geração" (1979), em "Lola" (1981) e "Lili Marlene" (1981), além da minissérie "Berlin Alexanderplatz" (1980). Na Meca de Hollywood, na década de 1990, passou pela metralhadora humorística de Jim Carrey em "Ace Ventura" (1994) e deu o ar de sua graça à sci-fi "Barb Wire" (1996), com Pamela Anderson. Fez sucessos, mas nunca deixou de ser indie.
Foi o artista plástico e pensador da pop art Andy Warhol (1928-1987) que ajudou a consagrar Udo. Andy produziu as pepitas da contracultura "Sangue para Drácula", de 1974, e "Carne para Frankenstein", de 1973. Os dois longas, dirigidos sob a grife de Paul Morrissey (1938-2024), escandalizaram o mundo à época, pela alta voltagem sexual, além da violência gráfica, tornando-se objetos de fetiche queer - palavra que encontrou em Udo um signo... de charme.
"Filmar me dá um baita tesão", confessava.
Em Cannes, num papo com o Correio da Manhã, Udo afirmou que em sua juventude, a imagem que muitos europeus tinham da sociedade brasileira era estereotipada. "Quando se falava em Brasil na Europa, tudo em que a gente pensava eram rapazes e moças seminus, pulando o carnaval em plena alegria. Mas um país como o de vocês não pode ser só isso. E não é. Um dia, Kleber me conheceu num festival nos EUA, em Palm Springs, e mostrou o roteiro de 'Bacurau'. Aceitei fazer, encarei um avião e, depois do voo, fui levado de carro, por horas, sertão adentro, onde conheci uma realidade viva, cheia de humanidade. Era gente a jogar cartas nas ruas, vendinhas por todo lado, cães a correr atrás de ossos. Foram três semanas de trabalho. Três semanas no Paraíso", afirmou Udo.
"Já debochei de Hitler na telona, já fui o Drácula mais magro da História e estive com Fassbinder em grandes filmes. Eu só nunca tive a coragem de procurar um diretor que admirasse muito, mesmo com todo o currículo que tenho para pedir um papel. Imagine se eu chegasse para o David Lynch e dissesse a ele: 'adoraria filmar com você'. Ele poderia olhar na minha cara e responder: 'Todo mundo gostaria, amigo'. Sempre amei Almodóvar, mas se eu pedisse trabalho a ele e ouvisse um 'não!', ia me encolher até sumir. De toda forma, filmei muito. Fiz até coisa boa".