Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

'Apolo', um álbum de bebê na forma de um filmaço

A paixão do casal transgênero formado por Isis Broken e Lourenzo Gabriel gerou uma criança e um filme que não para de ganhar prêmios por onde passa desde sua estreia no circuito dos festivais | Foto: Divulgação

Simbiose de talentos da artista musical Isis Broken e da atriz Tainá Müller, o documentário 'Apolo' estreia nesta quinta debatendo maternidade em famílias transcentradas

Lá pelos 15 minutos iniciais da primeira projeção pública de "Apolo", longa-metragem vencedor do troféu Redentor de Melhor Documentário do Festival do Rio, tinha uma ala de marmanjos chorando no Estação NET Gávea, comovida com relatos de um casal trans sobre a experiência da gestação de uma criança - vetorizada sob a ferocidade do preconceito. O que começou com lagriminhas abriu-se em berreiro, mas demarcou uma exibição antológica, com a consagração da narrativa no olhar do júri. O filme papou ainda a Láurea de Melhor Trilha Sonora Original, coroando a composição do músico Plínio Profeta.

Semana passada, essa joia dirigida pela artista musical Isis Broken e pela atriz Tainá Müller recebeu importantes reconhecimentos no 33º Festival MixBrasil de Cultura da Diversidade, com cerimônia de premiação realizada na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. A produção conquistou o Coelho de Prata (Prêmio do Público) de Melhor Longa Nacional e a Menção Honrosa do Júri.

A justificativa da comissão julgadora: "Um filme que emociona por transbordar resistência, mas, principalmente, amor, respeito e cuidado. Com uma narrativa que expõe a intimidade de forma corajosa para denunciar violências institucionais, mas é amarrada pelo amor entre o casal e o acolhimento da família de ambos, este trabalho firma sua relevância pela riqueza de imagens e a potência não apenas de levantar o debate acerca das famílias transcentradas, mas de trazer esperanças para o que há por vir. No país que, no presente, mais mata pessoas trans no mundo, este filme reescreve a história por meio de uma carta para o futuro. Um futuro no qual a existência e o afeto entre famílias LGBTQIAPN , e principalmente entre pessoas trans, deverá ser não apenas respeitado, mas celebrado. O filme é um registro histórico, uma carta de amor e um poético manifesto do futuro que é escrita como uma carta para esta vida tão aguardada e que tanto merece ser celebrada." Você precisa de mais motivo do que esses para conferir "Apolo" na telona, a partir de sua estreia, marcada para esta quinta?

Numa montagem sinuosa de Tatiana Lohmann, faiscando emoção a cada novo plano, "Apolo" acompanha a jornada de uma família formada por um casal transgênero revelando as nuances do amor. Enquanto acompanhamos a gestação do menino Apolo, refletimos sobre os dramas do casal transgênero que o gerou: a própria Isis Broken e Lourenzo Gabriel. É o pai que está dando à luz e a sociedade brasileira parece ainda não estar preparada para isso.

Isis e Tainá estreiam na direção com "Apolo". Elas conversaram com o Correio da Manhã sobre transfobia, aceitação e amor.

Para a plateia, "Apolo" é uma aula de educação sentimental sobre a luta contra a transfobia. Mas para vocês duas, ligadas pelo filme, mas conectadas ao tema de maneiras distintas, que formas de reeducação ou rememoração o filme propiciou? De que maneira, numa direção a quatro mãos e dois corações, os sentimentos de vocês se combinaram, numa parceria e numa amizade?

Isis Broken - O filme é para todo mundo. A Tainá, que se tornou uma grande amiga e hoje faz parte da nossa família, trouxe essa ideia linda de transformar "Apolo" em um álbum de bebê. Nós topamos imediatamente, e funcionou de um jeito muito especial, porque, embora pensado para o nosso filhe, o documentário acaba falando com qualquer pessoa. Quando assistimos à primeira sessão no Festival de Cinema do Rio, ouvimos muita gente dizer: "Isso precisa passar nas escolas". E isso nos tocou profundamente, porque Apolo foi criado justamente como um espaço de compreensão, algo que até uma criança pudesse entender. Vivemos no país que mais mata pessoas trans, e já estamos cansadas de repetir essa estatística. A pergunta que fica é: o que a sociedade civil está fazendo para transformar essa realidade? É impossível sair da sala depois de assistir "Apolo" sem sentir alguma coisa, e esse era o nosso desejo desde o início da montagem. Não queríamos apenas reforçar o que todes já sabem: que essas mortes são resultado de um processo contínuo de desumanização. Optamos pelo movimento contrário. No documentário, mostramos que pessoas trans são seres humanos completos: temos família, amigos, vínculos, podemos criar e cuidar dos nossos filhos, podemos nos reproduzir e construir nossas próprias formas de afeto sendo LGBTQIAPN . Trazer essa humanidade aos corpos trans é, para nós, a maior urgência. E foi essa parceria a quatro mãos que possibilitou esse resultado.

Tainá Muller - Eu e a Isis temos muitas afinidades de pensamento. Somos duas pessoas com muitas "frentes" de criação abertas, nascidas longe do eixo Rio-São Paulo e cujo espaço galgado foi conquistado de uma forma bastante desbravadora, sem uma rede privilegiada de contatos, como é comum nesse meio. Claro que pra Isis, com os recortes de raça e transgeneridade, essa batalha fica ainda mais épica, o que só desperta minha admiração pela artista inteligente e articulada que ela é. Eu entrei em contato com a minha própria criança ferida, com meus próprios dramas familiares e com uma certa sensação de inadequação que me acompanhou durante toda infância para conectar profundamente com Isis e Lourenzo. Então foi muito fácil a gente chegar em consenso. Ela entregou ao filme o seu olhar através da câmera de mão que a acompanhou durante todo o processo, registrando tudo o que via enquanto vivia as situações e esse despojamento a serviço da obra é admirável. Depois ela confiou em mim toda a pós(-produção) do filme e pra nossa sorte, temos gosto muito parecido. Ela curtiu a ideia que propus de roteiro e eu fui compondo junto a Tati Lohman, nossa montadora, o caminho, sempre passando pelo crivo e pela colaboração de Isis e de Lourenzo, é claro, para fazer com verdade essa grande colagem "álbum de bebê" que é "Apolo".

O que a palavra maternidade passou a simbolizar para vocês depois desse processo criativo?

Isis Broken - A maternidade pra mim hoje significa amor! Porque ela surgiu de um lugar que não estava esperando, não estava esperando ser mãe. Havia acabado de me relacionar com Lourenzo e acabou acontecendo. Mas pra mim também significa resistência, porque sempre preciso bater na mesma tecla que, sim, sou mãe, que meu filhe não é adotade. E viemos de uma regra que a sociedade impõe de que pessoas trans não podem ter filhos, então levantamos um debate importante, porque nós não estamos limitados ao que a sociedade diz que estamos. Então, a maternidade trans vem desse lugar de muita luta. Preciso sempre bater na mesma tecla que, sim, eu sou mãe.

Tainá Muller - Maternidade pra mim é o mais próximo do que chamam de "amor incondicional". A gente deposita todo amor, energia e cuidado em um ser que não nos pertence, mas pertence a si mesmo e às escolhas que fará em seu caminho. Acho que ter um filho é o depoimento mais visceral que podemos dar ao mundo. E toda mãe é a mãe possível praquele filho. Eu amo quando Isis fala que o leite que tem a oferecer ao filho é a voz. Isso é muito psicanalítico, essa nutrição e cuidado potente através dessa primeira voz que o sujeito ouve, que é a voz de quem o cuida.

Como foi depurar o material filmado na edição?

Isis Broken - Foi um trabalho difícil, demorado, mas feito a quatro mãos. Eu e a Tainá pensamos no que se encaixaria no documentário, para que qualquer pessoa pudesse entender, inclusive uma criança. Poder contar a história da nossa família para o público é também levar uma conversa necessária e potente sobre o reconhecimento e o respeito às existências trans, especialmente no contexto da parentalidade. Muita gente já se emocionou assistindo ao documentário, e isso nos mostra que estamos no caminho certo, que essa conquista não é apenas nossa. Ela representa todas as pessoas trans que sonham em formar famílias, que resistem todos os dias e que merecem viver com dignidade. Seguimos na luta por respeito. Ser uma pessoa trans no Brasil ainda é enfrentar muitas barreiras, porque tudo se torna mais difícil quando não se é cis. Mas é justamente por isso que contar essas histórias é tão urgente, para que um dia, ser quem somos não precise mais ser um ato de resistência.

Tainá Muller - Eu e Tati Lohman ficamos assistindo durante uma semana o material todo, incluindo o precioso material de Isis. Fui surpreendida por uma potência gigante naquele material intimista que ela capturou. Mas alguma coisa faltava: um fio que conduzisse essa história de forma inteligível mesmo para as pessoas menos "iniciadas" com a temática trans. Eu queria muito fazer um filme onde mesmo as pessoas mais conservadoras, que por ventura se deparassem com esse filme, fossem enlaçadas pelo afeto, pela humanidade de toda aquela vivência do casal. Foi então que, no meio da noite, acordei com essa ideia de fazer um "álbum de bebê", de contar essa história toda para uma única pessoa: Apolo. No dia seguinte liguei empolgada para a Tati e para Ísis e Lourenzo que pra minha sorte curtiram a ideia. A partir daí, senti que precisaria abrir uma diária de estúdio, com Apolo já maiorzinho, para costurar essa colcha de retalhos. O álbum de bebê me deu a liberdade de partir para o lúdico, entender que o Melocoton era um personagem do filme e usar imagens "cósmicas" para ilustrar todo o aspecto transcendental que percebi na história. E então, com essa ideia em mente, entrevistei Ísis e Lourenzo dessa vez pedindo que contassem a história como se fosse para o filho, pra que a gente pudesse compor essa grande "carta". O interessante é que quando eles contaram a história com Apolo em mente, o tom todo mudava. A narrativa ganhava um tom doce e esperançoso, justamente o que eu estava buscando pro filme.