Recém-chegada ao 80 anos de vida, a caminho de completar seis décadas de cinema, a espanhola Carmen Maura, musa de Almodóvar, bota o Festival do Cairo no bolso com ‘Calle Málaga’, favorito na competição do evento
Preparando-se para estrelar um thriller do divo ibérico da bizarrice Aléx De La Iglesia, a madrilenha María del Carmen García Maura chegou aos 80 anos em setembro em processo de renovação de prestígio, em latitudes variadas da Terra. No mesmo fim de semana em que venceu o Festival de Mar Del Plata, em solo argentino, vindo de sessões cheias de fervor em Veneza e Toronto, “Calle Málaga”, o novo trabalho da atriz, pôs a 46. edição da maratona cinéfila do Egito - chamada CIFF - de joelhos. Há um ar de “já ganhou!” por traz desse drama romântico candidato à Pirâmide de Ouro. Maryam Touzani, a cineasta marroquina por trás dos premiados “Blue Caftan”, de 2022, e “Adam”, de 2019, é quem assina a realização, extraindo uma estonteante atuação da musa de Almodóvar nos anos 1980.
“Imaginação é algo que não me falta, tampouco curiosidade”, disse Carmen Maura ao Correio da Manhã, em passagem pela Espanha, quando “Calle Málaga” era ainda apenas uma (boa) ideia, em meio à passagem de “Querido Fotogramas”, de Sergio Oksman, pela Europa.
Ele é brasileiro, mas vive em solo espanhol. Além dele, o carioca da Ilha do Governador Miguel Falabella também filmou com Carmen. Em 2018, ela foi ao Uruguai para rodar “Veneza” (2019) com o eterno Caco Antibes. Na ocasião, contracenando com Dira Paes e Eduardo Moscovis, ela explicou à imprensa brasileiro (num papo com o JB) o que a fez escolhar o cinema e o teatro com arenas de uma guerra contra a caretice, a partir do longa “El Espíritu”, de 1969.
“Gosto de fabuladores. Quando eu tinha uns 20 e poucos anos, trabalhava como galerista, dividindo meu tempo entre a galeria e meus compromissos como mãe. Aí fui a um evento no Ateneu de Madri e acabei participando de uma leitura. Tinha um crítico bastante famoso e temido lá, Alfredo Marquerie, que me viu e me procurou pra dizer que eu tinha talento. Ele sugeriu que eu me dedicasse integralmente a atuar. Saí dali mordida e acabei me matriculando no Teatro Universitário, para desgosto do meu marido, que não gostou da minha escolha. Meus pais gostaram menos ainda. Quando me profissionalizei, passei a ser tratada nas festas de família como uma pessoa doente. Para o meu pai, saber que tinha uma filha atriz era o mesmo que ter uma filha com uma doença terminal. Eu tinha 25 anos quando passei por isso tudo, mas segurei o rojão, pelo encanto que era trocar coletivamente com aquele povo maluco que atuava no teatro ou no cinema da Espanha nos anos 1960”, explicou Carmen, que viu no diretor manchego Pedro Almodóvar um parceiro de trabalho numa troca que durou quase duas décadas e recomeçou em 2006, em
“Volver”, coroado com uma láurea de atuação coletiva para suas atrizez.
“Mulheres à beira de um ataque de nervos” (1988) foi um dos acerto (quiçá o mais rentável deles em duo. “Pedro preparava uma montagem de um texto de Sartre, 'As mãos sujas', no momento em que eu o conheci, ainda jovenzinho. Aliás, nós dois éramos jovens. Pegávamos tudo emprestado para fazer os nossos projetos. A locura dele foi a minha faculdade de cinema”, diz a estrela, que encara temperaturas à moda almodovariana nas cores de “Calle Málaga”. Maryam deu à madrilenha o papel de María Ángeles, espanhola de 79 anos que mora sozinha em Tânger, no Marrocos, e aprecia sua rotina diária. No entanto, sua vida vira do avesso quando a filha chega de Madri para vender o apartamento onde sempre viveu. Determinada a ficar, María faz tudo o que pode para recuperar sua casa e seus pertences e, inesperadamente, redescobre o amor e a sensualidade. Nesse personagem, Carmen ganhou a láurea de atuação em Mar Del Plata.
“O cinema exige que a gente tenha um anjo da guarda forte”, disse Carmen nas filmagens de “Veneza”, arranhando um portunhol.
O Festival do Cairo segue até o dia 21, quando o júri presidido pelp diretor turco Nuri Bilge Ceylan anuncia as produções vencedoras. Na sequência, rola sessão do longa de encerramento: “A Voz de Hindi Rajab”, da tunisiana Kaouther Ben Hania.