Maratona cinéfila do Cairo celebra a prata da casa e mostra a nova safra de estéticas da terra dos faraós, que investem em narrativas de conflitos sentimentais e documentários humanistas
Daqui a três dias, os júris das diferentes mostras competitiva do 46º Festival do Cairo vão anunciar os filmes que renovaram as baterias de um evento estratégico para a conexão entre a África árabe, o Oriente Médio e a Europa, encontrando sua dramaturgia mais explosiva em seu próprio quintal: "Pasha's Girls", de Mando El Adl. Sua sessão será nesta terça-feira. É uma das produções que assinalam a nova safra de cirações audiovisuais do Egito. Tem nitroglicerina em sua dramaturgia.
Saca só a trama: após um atentado terrorista a uma igreja em Tanta, o corpo de Nadia, funcionária do salão de beleza Al Pasha Women's Beauty Centre, é encontrado, e a proprietária do centro, Nour Al Pasha, e as funcionárias ficam em apuros com a necessidade de encobrir o incidente, que é basicamente um suicídio, a fim de preservar a reputação do centro em meio à intensa concorrência. Esse enredo evoca uma série de hipocrisias, mas evoca as tensões (quase sempre armada) naquele extremo do planeta - onde um cinema faminto por debates e aplausos tem sido gestado.
Um dos concorrentes da seção Horizontes Árabes o longa de Mando El Adl explora os apuros por que Al Pasha passa para tentar obter uma licença de sepultamento de forma não oficial e ilegal. Suas trabalhadoras se envolvem na causa, na tentativa de encontrar uma maneira de lavar Nadia para o enterro em segredo. No entanto, elas enfrentam várias dificuldades sucessivas. Assim, cada uma delas relembra sua relação com a colega morta. Elas confrontam suas realidades e ações, bem como o papel que Al Pasha representa em suas vidas, numa tradução do afeto que corre a nova leva de filmes do Egito.
"Nós chegamos a produzi 60 filmes por ano, mas tivemos uma queda drástica de nossos maiores mercados consumidores no exterior, ao perdermos o Líbano e a Síria, permanecendo com uma boa circulação de nossos filmes pela Argélia e uma parte do Golfo. Caímos de 60 para 16 longas anuais, mas, a cada novo ano que levanto este evento, percebo melhoras no que nós estamos fazendo, sempre em luta para preservar os nossos clássicos, legendando-os para que eles possam circular", explicou ao Correio da manhã o presidente do Festival do Cairo, Hussein Fahmy. "Nossa luta é para nos mantermos jovens, com a certeza de que os filmes nascidos aqui têm um ritmo distinto do de Hollywood. Filmamos histórias que mergulham na condição humana, com um histórico de imensa produção e de sucesso popular".
Apoiado na curadoria de seu diretor artístico, o crítico Mohamed Tarek, Fahmy arquitetou um Panorama Egípcio, só com experimentos dramatúrgicos que buscam novas miradas para a terra dos faraós. Dele fazem parte "Silver Tongue", de Omar Ali; "Cairo, Standstill", de Amr Abed; "The Day After", de Zeina Amr Dessouky; "Where the Winds Come From", de Hassan Nouby; "Blackout", de Ahmed Mostafa Elzoghby; e "Action, Nadia, Cut!", de Salma Elsharnouby.
Lá no Egito nasceu ainda o documentário que abriu a competição oficial pela Pirâmide de Ouro do Festival Internacional do Cairo (apelidado pela sigla CIFF): "One More Show". A realizadora egípcia Mai Saad uniu forças com o diretor de fotografia e cineasta palestino Ahmed Al Danaf para criar um estudo comovente sobre os aspectos analgésicos da arte em tempos de guerra. Seu .doc se passa em meio à devastação do genocídio perpetrado por Israel em Gaza, onde um grupo de artistas circenses se recusa a deixar o desespero tomar conta do palco, apelando para técnicas de palhaçaria. Vemos a trupe The Free Gaza — formada por Youssef, Batout, Ismail, Mohamed e Just — depois de serem deslocados de um extremo norte para o sul da cidade, enquanto transformam sua arte num ato de resistência e resiliência e esperança.
"O Free Gaza trabalha com quase nada, mas eles tinham registros de vozes e de imagens das pessoas que assistem a seus espetáculos, o que foi crucial para o desenho de som do nosso filme", disse Mai ao Correio da Manhã.
Em seu cuidado com a tradição, Fahmy não esqueceu de seu maior artesão autoral: Youssef Chahine (1926-2008), o diretor mais aclamado daquele país entre 1950 e 2007, conhecido entre nós por "O Destino" (1997) e "Alexandria... Why?" (Prêmio do Júri na Berlinale em 1979). Com cinco indicações à Palma de Ouro em seis décadas de carreira, Chahine abriu as janelas do mundo para as estéticas audiovisuais do Egito. Para honrar a glória de sua filmografia, o CIFF projetou uma cópia restaurada de um de seus mais potentes trabalhos: "The Emigrant" ("Al-Mohager"), de 1994. O roteiro acompanha os passos do andarilho Ram (Khaled Nabawy), que deixa para trás a vida nômade de sua tribo beduína para buscar conhecimento em novas paragens, em busca de uma reinvenção pessoal.
O Festival do Cairo termina nesta sexta-feira.