Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

David Lynch nas dunas do barato

O cultuado 'O Homem Elefante' levou David Lynch à fama: o longa custou US$ 5 milhões, faturou US$ 26 milhões e ainda emplacou oito indicações ao Oscar | Foto: Divulgação

Maratona cinéfila do Egito se une ao rol de mostras internacionais que celebram o legado do mítico diretor de 'Veludo Azul', morto em janeiro, exibindo o aclamado 'O Homem Elefante' e seus curtas

Desde 20 de janeiro, o cinema guarda luto pela morte de David Lynch (1946-2025), abrindo espaço nos mais prestigiosos festivais do mundo para rever os cults que fizeram do diretor ser alcunhado como "o papa da estranheza". No Brasil, seu "Mulholland Drive: Cidade dos Sonhos" (ganhador do prêmio de Melhor Realização em Cannes, em 2001) foi relançado logo após a sua partida e ficou meses a fio em cartaz. Na maratona cinéfila do Cairo - iniciada no dia 12, no Egito, com projeção de "O Último Azul" -, o legado lynchiano virou coqueluche e supera até a procura por títulos inéditos. "O Homem Elefante" (1980), que transformou o artista visual numa promessa para Hollywood, foi uma das pérolas resgatadas pelo evento egípcio. Nesta terça, seu público vai se empapuçar com uma coletânea de 97 minutos das narrativas breves rodadas pelo diretor em formato curta-metragem.

Sempre de ombreiras, por alegar aversão à sensação de frio nas omoplatas, Lynch fez do cigarro seu companheiro por toda uma vida. Sua estadia na Terra estendeu-se por 78 anos e terminou onze meses atrás, sob a fricção do enfisema pulmonar que começou a inviabilizar sua permanência nos sets, por travas respiratórias. Seu imaginário, entretanto, nunca foi travado por nada, apostando no insólito ao fragmentar signos que, no senso comum, deveriam ser domesticáveis. Por isso, um casal idoso de feições fofas adquire uma perspectiva assustadora numa sequência de "Mulholland Drive". O insólito era o dispositivo que guiava a narrativa do cineasta e artista visual americano, nascido em Montana em 20 de janeiro de 1946. Sua recente participação como ator em "Os Fablemans" (2022), de Steven Spielberg, no papel do mítico realizador John Ford (1894-1973), foi um presente para quem ansiava por recuperar contato com sua filmografia, que se alternava entre longas, vídeos, curtas (como "What Did Jack Do?", hoje na Netflix) e a série "Twin Peaks", um cult da década de 1990 retomado em 2017, com direito à projeção no Palais des Festivals na Croisette. Havia um outro seriado, "Urecorded Night", entre os projetos que sua fraqueza pulmonar encerrou, interrompendo uma filmografia coroada com a Palma de Ouro por "Coração Selvagem" (1990).

Quando Lynch estreou na direção de longas, em 1977, com "Eraserhead", o audiovisual dos EUA curtia os momentos finais da centelha revolucionária chamada Nova Hollywood, a onda que renovou a maneira de se filmar por lá, a partir 1967, engajando a indústria cinematográfica num questionamento de práticas moralistas. Faziam parte desse bonde Martin Scorsese, Brian De Palma, Francis Ford Coppola, Elaine May, George Lucas e o já citado Spielberg, que tinham uma mirada de revisão simbólica da América. Na reta final, despontaram vozes autorais que se preocupavam com as entranhas desse país de ambição (e ego) continental: John Waters, John Carpenter e Lynch, catapultado ao estrelato com "O Homem Elefante", no alvorecer da década de 1980. Ali, já era possível notar seu apreço por vivências não convencionais e hábitos estranhos, o que entrou em erupção pela primeira vez em "Veludo Azul", recompensado com uma indicação ao Oscar.

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Lynch morreu em janeiro, deixando como legado uma das obras mais estudadas do cinema moderno | Foto: Divulgação

Formalmente mais coeso com as estruturas narrativas do cinema anglo-saxônico do que seus títulos posteriores, "O Homem Elefante" custou US$ 5 milhões e faturou cerca de US$ 26 milhões, conquistando oito indicações ao Oscar, contando com um Anthony Hopkins em início de carreira. Ele interpreta Frederick Treves, cirurgião do Hospital de Londres no século XIX, que encontra John Merrick (1862-1890), um artista (ou, mais precisamente, uma "atração") de circo desfigurado e aparentemente mudo, em um espetáculo vitoriano de aberrações. Chefe do rapaz, o empresário Sr. Bytes, o brutal mestre de cerimônias de um freak show (vivido por Freddie Jones), conta histórias chocantes de como paquidermes agrediram sexualmente a mãe de Merrick para criar um monstro meio humano. Na esperança de ganhar notoriedade com uma descoberta médica, Treves paga a Bytes para levar Merrick ao hospital para exames, usando um capuz para discrição. Aos poucos, uma relação de afeto se firma.

No início desta década, uma das mais provocativas criações de Lynch, sua adaptação (finalizada em 1984) do romance de tom sci-fi "Duna", de Frank Herbert (1920-1986), ganhou sobrevida, a reboque da nova versão desse tratado literário da fantasia feita por Denis Villeneuve. Na época de seu lançamento, as liberdades estilísticas do realizador chocaram plateias, mas hoje ele só angaria novos fãs.

O Festival do Cairo segue até o dia 21, quando "A Voz de Hindi Rajab" encerra a programação. Na competição oficial, o título mais badalado entre os concorrentes à Pirâmide de Ouro já exibidos é "The Silent Run", de Marta Bergman, da Bélgica.