Confirmando certezas de excelência desenhadas desde sua passagem pela seleção de Cannes, em maio, "Mirrors Nº 3" atropelou a Mostra de São Paulo, no mês passado, e agora cruza em plena velocidade autoral as estradas artísticas do Egito ao passar pelo 46º Festival de Cairo, em que se candidata ao posto de filme mais procurado pelo público. É comum isso acontecer a produções que levam a grife autoral do alemão Christian Petzold.
Seu novo longa-metragem virou um acontecimento estético em 2025. Várias mostras o querem, redes de TV o almejam e grandes plataformas digitais sabem seu potencial, sob a empolgação gerada na Quinzena de Cineastas da Croisette em suas primeiras exibições pelo planisfério cinéfilo. Seu apelo vem da assinatura criativa do artesão cinematográfico que vem renovando a indústria audiovisual germânica. Cults como "Em Trânsito" (2018) e "Fantasmas" (2005) são alguns de seus maiores acertos. Paula Beer, sua diva, é a estrela desse thriller de essência especular que o circuito egípcio acolhe neste sábado na sala Zamalek.
A atriz vive a estudante de piano Laura que se envolve em um acidente de carro no qual seu namorado morre. Milagrosamente, ela sobrevive ilesa ao desastre e é acolhida por uma família. Nesse clã, encontra conforto e apoio para retomar sua vida na figura da misteriosa Betty (Barbara Auer), mas, com o tempo, percebe que há algo errado com as pessoas que a receberam aos mimos. Suspeita-se de uma estranha transferência de expectativas em "Miroirs No.3" (seu título original).
"O afeto nos dá uma identidade de pertencimento", disse Petzold ao Correio num papo via telefone, durante a produção de "Afire" (2023), seu último longa, que ganhou, entre muitos troféus, o Grande Prêmio do Júri da Berlinale e a láurea de Melhor Filme no Festival de Palic, na Sérvia.
Nascido na cidade de Hilden, há 65 anos, ele iniciou em 1988 uma das carreiras mais sólidas de sua pátria entre realizadores que viraram grife. "Undine" (laureado com Prêmio da Crítica na Berlinale de 2020) e "Jericó" (indicado ao Leão de Ouro em 2008) consolidaram sua notoriedade como cineasta com verve de autor.
"Discutir identidade, a partir do cinema, é um processo antigo, que eu vejo até em Hitchcock", disse Petzold. "A Alemanha é um país assolado por uma culpa histórica que nos é imputada pelo que se passou durante o nazismo. Mas durante os bombardeios que se seguiram ao fim da II Guerra, em 1945, destruíram não só nossos prédios: acabaram com a nossa cultura, com a nossa moral e com a nossa ética. Acabaram com a nossa sensação de pertencimento. Eu faço parte de uma geração de diretores que busca as histórias que construíram essa grande História em que nos rodeamos de fantasmas. Por isso, nos meus filmes, há personagens ausentes, pessoas que desaparecem, mas deixam seu espectro".
Embalado pelo hit "In My Mind", do grupo vienense Wallners, o novo longa de Petzold estreou no Brasil via Imovision. A distribuidora de Jean Thomas Bernardini foi responsável por trazer ao Brasil os cults anteriores desse artesão autoral germânico. Alguns deles foram lançados na grade da plataforma digital da distribuidora, o Reserva Imovision - e seguem por lá: "Phoenix" (2014), "Yella" (2007), "A Segurança Interna" (2000) e o já citado "Jericó". São longas que ilustram sua relação de intertextualidade com a literatura, que se depura a cada novo título. Um dos primeiros trabalhos dele a chegar aqui foi "Bárbara" (2012), que brilhou no início do ano no cardápio da mostra Bergamo Film Meeting, na Itália.
"Meu esforço é tirar a História de uma inércia arquetípica, é proteger os personagens do lugar comum, é fomentar uma nova perspectiva para a imagem,", disse Petzold, em Berlim. "Num universo repleto de narrativas de pessoas que precisam se esconder e se reinventar, construído pelo cinema ao longo de décadas, o amor aparece como um norte para os personagens. Hoje, eu percebo o mundo à minha volta, e sua sensibilidade, pelos ruídos que ele produz. Quando um cineasta procura locações onde filmar, ele, de costume, preocupa-se com o visual e busca imagens de referência, confiando ao olhar o desenho de sua narrativa. Já eu, preciso ouvir o que esse lugar expressa, para que ele me conte sua história".
Vai ter celebração de autoralidades nas telonas do Cairo até o dia 22, quando o júri presidido pelo diretor turco Nuri Bilge Ceylan anuncia os ganhadores da competição oficial. Os badalados "Once Upon a Time in Gaza", de Tarzan & Arab Nasser (Palestina), e "Death Does Not Exist", de Félix Dufour-Laperrière (Canadá), integram a disputa pela Pirâmide de Ouro.