Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Tudo azul...ainda

Rodrigo Santoro e Denise Weinberg em 'O Último Azul' | Foto: Guillermo Gaza/Divulgação

Ganhador do Grande Prêmio do Júri na Berlinale, filme do pernambucano Gabriel Mascaro ambientado em solo amazônico abre o Festival do Cairo e segue para a Estônia

Com cerca de 185 mil ingressos vendidos em circuito nacional, "O Último Azul" não cessa de dar alegrias para o Brasil, levando nosso audiovisual planeta adentro, a extremos geográficos da Terra. Transformado em ímã para o olhar estrangeiro depois de conquistar o Grande Prêmio do Júri da 75ª Berlinale, em fevereiro, a produção ambientada na paisagem fluvial amazonense vai ao Egito nesta quarta-feira, com a missão de abrir a 46ª edição do Festival do Cairo. Gabriel Mascaro, seu realizador, conquista com essa escalação mais prestígio e um lugar estratégico no planisfério audiovisual.

Ponto de conexão (e de fricção, pelo uso do Árabe como língua) entre a África e o Oriente Médio, a terra dos faraós iniciou sua maratona cinéfila em 1976 e fez dela numa vitrine para reflexões estéticas - e para longas perfumados com cheiro de Oscar.

Por lá, até o próximo dia 21, tem competição oficial com direito a uma estatueta afinada com o maior patrimônio cultural de seu povo (o troféu se chama Pirâmide de Ouro). Para julgar quem leva para casa essa preciosidade, entra em campo um júri estelar, cuja presidência, este ano, fica a cargo do cineasta Nuri Bilge Ceylan, mais respeitado realizador da Turquia na atualidade, premiado em Cannes, com "Climas" (2006), "3 Macacos" (2008), "Era uma Vez na Anatolia" (2011) e "Sono de Inverno" (que saiu da Croisette com a Palma dourada de 2014).

O Cairo promove ainda painéis de discussão com estandartes das lutas antissexistas, como a atriz palestina Hiam Abbas (que vive Marcia Roy no seriado "Succession") e a diretora húngara Ildikó Enyedi (ganhadora do Urso de Ouro por "Corpo e Alma"). Tem também projeção da prata da casa, com uma seleção só de joias egípcias inéditas, como "Action, Nadia, Cut!", de Salma El Sharnouby, e "Silver Tongue", de Omar Ali. No meio disso tudo, a brasilidade aflora, com o CEP da Amazônia, filmada por Mascaro, egresso de Pernambuco. "Ventos de Agosto" (2014) abriu a gira de sua consagração, que hoje desperta a curiosidade de quem vive cerca das esfinges.

O esplendor da maior floresta do mundo, enquadrado por Mascaro sob vetores de realismo mágico, desloca-se do Cairo para a Estônia, porção báltica da Europa, no próximo dia 16, onde "O Último Azul" terá uma sessão no festival POFF Tallin Black Nights. "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho, também será projetado lá. Anualmente, essa celebração estoniana da diversidade cinematográfica abre espaço para filmes do Brasil, assim como o Cairo, abrindo-se a grandes achados sul-americanos, endossados previamente por Berlim, Cannes e Veneza.

Às vésperas do carnaval, a Alemanha referendou o trabalho de Mascaro, que, dez anos atrás, venceu o Festival do Rio e ganhou o Prêmio do Júri dos Horizontes venezianos, no Lido, com "Boi Neon". Uma ovação em forma de urro contagiou a Berlinale Palast, debaixo de dois graus do frio, ao fim da exibição de "O Último Azul" na luta pelo Urso de Ouro de 2025. Guadalajara, Sydney, Valladolid e Buenos Aires também exibiram o longa em seus festivais e celebraram a destreza do realizador de "Divino Amor" (2019) ao guiar a câmera por afluentes do Amazonas, driblando os clichês na representação daquela selva.

Macaque in the trees
Gabriel Mascaro no set: 'Vou da utopia para chegar à distopia' | Foto: Guillermo Garza/Divulgação

"Vou da utopia para chegar à distopia", disse Mascaro ao Correio da Manhã, no Rio Grande do Sul, quando "O Último Azul" abriu o Festival de Gramado, em agosto. "É um ensaio fantástico com a Amazônia em toda sua contradição".

No enredo que o Festival do Cairo confere esta noite, o governo brasileiro passa a transferir idosos para uma colônia habitacional para "desfrutarem" seus últimos anos de vida em isolamento. Antes de seu exílio compulsório, Tereza, uma mulher de 77 anos (vivida por Denise em colossal atuação), embarca em uma jornada para realizar seu último desejo: ter dignidade... para com ela ser livre.

"Esse projeto foi um presente. Na Amazônia, tudo o que um ator não pode fazer é atrapalhar o roteiro. Para isso, eu escuto o texto", disse Denise, coroada no México com o prêmio Maguey por sua atuação.

Além de um Urso prateado, esse river movie existencialista ganhou da Berlinale o Prêmio do Júri Ecumênico e um mimo de leitores/as do jornal germânico "Berliner Morgenpost". Cada uma dessa vitórias atraiu holofotes para Denise, que nunca se deixou encantar pela badalação.

"Aquele cenário era um palco, cheio de árvores, e eu olhava para ele reverente. Há sempre que se ter reverência pelo local em que se trabalha. Ali, a Natureza é muito potente", explica a atriz.

Liberdade é a tônica do Festival do Cairo, num embate histórico contra mordaças morais do Islã. Escolha mais acertada para a abertura de sua programação, impossível, em especial pela presença luminosa de uma estrela (também) hollywoodiana no elenco de Mascaro: o ator petropolitano Rodrigo Santoro. Consagrado com sucessos na TV ("Westworld"), nos streamings ("7 Prisioneiros") e na telona, entre "Carandiru" (2003), "300" (2007) e o recente "O Filho de Mil Homens", ele tem uma interpretação visceral em "O Último Azul". Seu personagem, Cadu, é um barqueiro que corre pelos rios amazônicos com a tristeza de ter perdido uma paixão, sua companheira Deusinha.

"Vejo no filme a importância de um homem tomar contato com sua fragilidade", disse Santoro ao Correio. "A floresta é professora. Aprendi tanto. Cheguei da cidade totalmente fora da sintonia. Aos poucos, fui sintonizando com o tempo e o espaço daquele lugar. Quando percebi, já estava conectado, escutando os sons da mata nos Igarapés".

Organizado sob a direção artística do curador Mohamed Tarek, o Festival do Cairo vai encerrar suas atividades com a entrega das Pirâmides de Ouro, Prata e Bronze no dia 21, quando exibe "A Voz de Hindi Rajab". Apesar da torcida por "O Agente Secreto", as maiores chances de Oscar para um filme de língua não inglesa de 2026 parecem estar com esse penoso ensaio entre relato real e encenação da diretora tunisiana Kaouther Ben Hania, responsável por "As 4 Filhas de Olfa" (2023). A partir do áudio original de uma menina palestina que ficou num tiroteio na Faixa de Gaza, em janeiro de 2024, essa cineasta reconstitui a luta de um grupo de voluntários para tentar resgatá-la. A produção ganhou o Grande Prêmio do Júri em Veneza e o Troféu Cidade de Donostia em San Sebastián. Promete agora levar o Egito a um Nilo de lágrimas.

 

Os 14 filmes em disputa pela Pirâmide de Ouro de 2025

Festival do Cairo logo | Foto: Divulgação

* "Exile" de Mehdi Hmili (Tunísia)

* "The Things You Kill", de Alireza Khatami (Turquia)

* "Renovation", de Gabriele Urbonaite (Lituânia)

* "Souraya, Mon Amour", de Nicolas Khoury (Líbano)

* "The Silent Run", de Marta Bergman (Bélgica)

* "Zafzifa", de Peter Sant (Malta) | 99 min | 2025 (Marrocos)

* "Once Upon a Time in Gaza", de Tarzan & Arab Nasser (Palestina)

* "Death Does Not Exist", de Félix Dufour-Laperrière (Canadá)

* "Sand City", de Mahdee Hasan (Bangladesh)

* "One More Show", de Mai Saad & Ahmed Eldanf (Egito)

* "Dragonfly", de Paul Andrew Williams (Reino Unido)

* "A Son", de Nacho La Casa (Espanha)

* "As We Breathe", de Seyhmus Altun (Turquia)

* "Calle Malaga", de Maryam Touzani (Marrocos)