Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Michel Franco jaz jus ao sobrenome

A elegância com que Michel Franco filma balé, mesmo sem ter intimidade com a dança, serve de pano de fundo para um debate político em 'Sonhos' | Foto: Isaac H/Teorema

Realizador mexicano que expõe a falência moral de sua pátria desarma ardis paternalistas dos EUA de Trump sobre a América Latina com 'Sonhos', que disputou o Urso de Ouro

Sem qualquer empolgação com as narrativas pop de super-heróis que um dia lotaram salas no mundo todo, o mexicano Michel Franco não almeja ser chamado para dirigir filmes estrelados por vigilantes mascarados ou fantasias no molde Harry Potter. Respeita o caminho de seus compatriotas Guillermo Del Toro (hoje na Netflix com "Frankenstein") e Alfonso Cuarón (de "Gravidade"), mas dispensa as cartilhas de gêneros que consagraram ambos.

O México que enquadra não tem espaço para vigilantes nem para magia. "Sonhos" ("Dreams"), que ele acaba de lançar no Brasil, depois de uma leva de projeções no Festival do Rio, carrega a crueza... e a crueldade... de que ele fala. Concorrente ao Urso de Ouro da Berlinale 2025, em fevereiro, a produção parte do mundo da dança para estruturar uma geopolítica de desilusão.

"Yves Cape, um fotógrafo belga que virou o meu colaborador mais próximo nos últimos anos, numa trajetória de seis longas, já sabe que opero a partir de processo de comunicação com minha equipe no qual só o olhar basta para dar as indicações da cena", respondeu Franco ao Correio da Manhã, em Berlim, ao falar sobre a dinâmica criativa de uma trama com foco nas sequelas da imigração entre a sua nação e os Estados Unidos.

Trump havia acabado de ser reeleito quando Franco levou "Sonhos" às telas alemãs, pautado por uma lógica avessa a esperanças a partir da qual cunhou os devastadores "Nuevo Orden" (Grande Prêmio do Júri em Veneza, em 2020) e "Chronic", ganhador do prêmio de Melhor Roteiro em Cannes, em 2015.

Macaque in the trees
Michel Franco, cineasta mexicano | Foto: Divulgação

"Se acredito no sonho americano? Hoje, não mais, e tenho autonomia para sobrrviver de forma autônoma, apoiado na confiança que estrelas como Jessica Chastain, uma das maiores atrizes do mundo, depositam no meu olhar".

Da mesma forma como fez uma parceria sólida com Tim Roth, Franco tem estabelecido Chastain como a sua atriz assinatura. Fizeram "Memory", em 2023, e unem-se agora no que o cineasta chama de "uma história de amor".

Jennifer, a milionária vivida por Jessica em "Sonhos", é a administradora de uma fundação de filantropia que investe em dança, em São Francisco, num apoio a quem migrou. Passa a viver uma tórrida paixão com um bailarino do México: o jovem Fernando (Isaac Hernández). Vetores da política americana acerca de estrangeiros vão influir na relação de ambos, e liberar demónios no rapaz.

"Depois de ver Isaac em cena, a bailar, percebi que ele e responsável por reaproximar o México da arte da dança" diz Franco, produtor de "Olmo: Entre o Dever a Festa", outra sensação da Berlinale, que passou pelo Festival do Rio.

Por sua acidez, Franco não costuma ser cogitado para as estatuetas hollywoodianas. Calçando-se na comédia política "No Nos Moverán", do diretor estreante Pierre Saint-Martin Castellanos, para tentar uma vaga no Oscar, o México ganha prestígio global com "Sonhos" e vai muito bem na criação de conteúdo 0 km para plataformas digitais. Um bom exemplo é o barulho da série "Sem Querer Querendo", sobre a criação do Chaves, na HBO Max. Aquela pátria só não anda em sua melhor fase cinematográfica no que envolve a consagração de espetáculos de alta visibilidade para além de suas fronteiras. Em 2024, "Sujo", de Astrid Rondero e Fernanda Valadez, que venceu o Festival de Sundance, nos EUA, prometia uma nova era de ouro para a pátria natal do Seu Madruga, mas não explodiu no gosto do povo, pelo menos não do modo como "Amores Brutos" estourou na preferência popular - no mundo todo - há 25 anos. Não por acaso, ao comemorar duas décadas e meia de prestígio, com direito a uma cópia restaurada em tecnologia 4K, o longa-metragem de Alejandro González Iñárritu voltou ao circuito e hoje bate ponto no streaming MUBI.