Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Joel Zito Araújo: 'O embarreiramento parece maior que a flexibilização'

Em entrevista ao Correio da Manhã, Joel Zito Araújo - realizador consolidaddo como documentarista - repassa sua filomografia a limpo e revela o desejo de rodar novos longas de ficção | Foto: Divulgação

Faz tempo que o mineiro Joel Zito Araújo “caiu na real”... e de cabeça: sua obra, aclamada como um aríete audiovisual na luta antirracista, encontrou no documentário seu veio mais prolífico de ação. Neste domingo, ele estará de aniversário. Completa 71 anos. A festa coincide com o aumento da popularidade do cineasta na arte de documentar. Nesse registro seu prestígio só faz crescer, como comprova a conquista do prêmio do público, na Mostra de São Paulo, que ganhou na semana passada pelo febril “Cadernos Negros”. Autor de ficções como “Filhas do Vento” (2004) e “O Pai da Rita” (2021), Joel vem arrancando aplausos por onde passa com seu novo longa-metragem de toada documental, evocando a prosa de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). A partir dela, ele conta a história da série literária criada em 1978 em São Paulo. É um olhar para a peleja da população negra para afirmar sua voz na arte da escrita.
Na entrevista a seguir, Joel fala das trilhas estésticaa que abre ao investigar a realidade e antecipa as joias que anda a garimpar em jazidas ficcionais.

"Cadernos Negros" é parte de uma leva documental recente sua que fortalece sua interação com a não ficção. O que o documentário te permite de ação em sua luta decolonial e em suas batalhas antirracistas?

Joel Zito Araújo - Creio que meu filme “Meu Amigo Fela” (2019) e a série “PCC: O Poder Secreto”, de 2022, consolidaram a minha carreira como documentarista, pois desde então tenho recebido vários convites para projetos. E tenho topado todos aqueles que se encaixam no desejo que carrego desde “A Negação do Brasil”, de auxiliar na construção de uma espécie de cartografia audiovisual do negro. Os filmes “Brasiliana” e “Cadernos Negros” e a série “A Ética do Silêncio” se encaixam perfeitamente nisso. E neste momento estou montando uma nova série: “Encontros com o novo cinema brasileiro”. Ela apresenta a geração que veio depois da minha, revelando suas concepções e contribuições para o cinema brasileiro. E suas diferenças de mim mesmo. Todos esses trabalhos documentais têm um campo de ação decolonial e antirracista muito evidente. Me sinto pleno por fazê-los e por crer que estou contribuindo para um novo olhar sobre o nosso país.


De que maneira parcerias com emissoras de TV e plataformas de streaming ampliam o escopo de alcance do formato documental?

Eu acho que o cinema documental não teria o nível e a quantidade de produções que tem hoje no Brasil se não houvesse o grande interesse das emissoras e das plataformas de streaming pelo formato, e se nós, os produtores e realizadores brasileiros, não tivéssemos alcançados a qualidade que alcançamos. E, para isso, a Ancine e a criação do FSA tiveram uma contribuição também fundamental.


Que novos projetos ocupam sua mente hoje e que abordagem eles trazem para a representação das populações pretas no país? Na ficção, como anda seu olhar?

Eu sinto que ainda não tive a chance de enriquecer minha linguagem e contar as histórias que gostaria no campo ficcional. Até o momento, fiz meia dezena de curtas e apenas dois longas ficcionais. Essa produção não representa falta de projetos e nem falta de talento de minha parte. Creio que os importantes prêmios que obtive com “Filhas do Vento”, e o reconhecimento crítico de “O Pai da Rita”, atestam isso. Mas levantar recursos mais vultosos que as ficções demandam no tipo de projeto que carrego ainda é uma barreira para mim. No momento, tenho pronto nas mãos o primeiro tratamento de dois novos roteiros ficcionais. Um é uma adaptação de uma peça teatral de Dani Balbi, “Mãe Preta Reincidente”. O outro é a pouco conhecida história de amor de um triângulo fundamental na cultura brasileira: Ruth de Souza, Léa Garcia e Abdias do Nascimento, que tem o título provisório de “3 histórias de amor e mágoas”. O primeiro filme fala do presente, de uma realidade cruel que não conta com a preocupação que o país deveria ter sobre o genocídio de jovens negros nas periferias, no olhar de uma mãe preta. O segundo é um drama romântico que se volta para uma década muito especial que o Brasil viveu, os anos cinquenta, e que teve um protagonismo negro muito interessante, tendo à frente estes três personagens vulcânicos. Essas são as minhas meninas dos olhos, no campo ficcional. Mas ainda estou buscando captar recursos financeiros para viabilizá-las. Estou com muita vontade de me dedicar mais à ficção, mas sem abandonar os projetos documentais. Eu gostaria de equilibrar minha carreira.


Efetivamente, o que mudou no cinema e na TV no país com as batalhas raciais travadas sobretudo a partir do avanço conservador pós-golpe? De que maneira a política do Planalto e as políticas antirracistas convergem?

Eu acho que o pré-golpe buscou embarreirar a produção de cinema no Brasil por motivos evidentes, pensar o país criticamente foi visto como subversão, voltando ao pensamento retrógado do período da ditadura militar. E o pós golpe ainda não conseguiu quebrar esse clima que paralisou recursos financeiros importantes. Tenho impressão que forças pré golpe ainda continuam fortes entre nós. É evidente que a produção cultural que pensa o país é um fator que ajuda a derrotar o obscurantismo da extrema direita. Mas me chama a atenção que o embarreiramento parece maior que a flexibilização. Mas, apesar disso, muita coisa mudou. Creio que a classe artística, a intelectualidade progressista, e os produtores audiovisuais, têm finalmente uma nova consciência em termos da compreensão do país com mais complexidade em termos de diversidade humana e das demandas históricas das populações negras e indígenas.

O longa"A Negação do Brasil", que te catapultou para o estrelato, já soma 25 anos. Que estrada você percorreu desde então e o que os teus filmes de gênese de carreia revelam sobre a sua obra?

 Eu acho que todas as minhas obras ajudam a pensar o Brasil e o mundo em termos de diversidade racial e humana. Ajudam também a ressaltar a contribuição civilizatória da população negra. Eu gosto de ver bobagens nas telas do cinema e da TV... um bom filme de ação, uma boa ficção científica... mas acho que esse não é o meu lugar como criador. Ainda sonho que o cinema e outras formas de produção audiovisual podem ajudar a fazer desse nosso planeta um lugar melhor para se viver. E me esforço em contribuir com este sonho que não é só meu.