Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

O cinema brasileiro na cova da invenção

O padre excomungado Tomás (Danilo Grangheia) ajuda Edgar Wilson (Selton) a lidar com as estranhezas de Abalurdes em 'Enterre Seus Mortos' | Foto: Rui Poças/Divulgação

'Enterre Seus Mortos', elogiado na Europa, no Festival de Sitges, chega às telas coroando a prosa de Ana Paula Maia

Abalurdes é o tipo de cidade em que se paga para entrar e se reza para sair. Caem aves de seu céu e há, em suas ruas, um povo fiel à tese de que o Diabo é seu amigo e vai salvá-lo do perigo. Esse lugar nasceu da prosa de Ana Paula Maia, romancista conhecida por livros como "De Gados e Homens" e "Búfalos Selvagens", que fala sujeitos duros, abrutalhados pelas asperezas de um mundo onde ajudar o próximo não faz parte das regras trabalhistas.

A filosofia de Nietzsche traduz bem suas paragens, quando seus aforismas nos dizem: os diamantes um dia foram um carvão que endureceu. Edgar Wilson (o personagem central da literatura de Ana Paula) é prova disso. As brasas de Wilson viraram pedra. A rocha que ele é, para além de suas asperezas, ganha sulcos existencialistas na atuação de Selton Mello, que dá vida a esse coletor de cadáveres em "Enterre Seus Mortos", um dos melhores longas-metragens de CEP brasileiro a estrear em 2025. Chega ao circuito neste fim de semana. Marco Dutra assina a direção desse requintado exercício de nosso audiovisual pelas veredas do horror, com passagem pelo Festival de Sitges, na Espanha, em 2024.

"Se há um deus, não acredito que ele se preocupe tanto com fronteiras inventadas por humanos - ele deve ter outras tarefas na vastidão cósmica. Mas um deus criado por nós, sim, esse poderia ser brasileiro, e estar do nosso lado", diz Marco Dutra ao Correio da Manhã. "Nós, brasileiros, que temos tantas almas vivas, certamente também criamos um inferno vasto, povoado pelos nossos mortos - ou por parte deles. De todas as pessoas que já viveram, 7% estão vivas hoje, um dado enigmático e que, ainda assim, sempre me assombra. Onde quer que esteja o inferno, parece que estamos, aos poucos, aprendendo a evitá-lo".

De tanto recolher restos mortais, Wilson ressecou. Sobrou-lhe o carinho cinéfilo pelo seu filme preferido ("Titanic") e um flerte com sua chefe, Nete (Marjorie Estiano), que sofre de um problema cardíaco: há um risco do seu coração crescer a ponto de explodir. Wilson acha isso bonito. Vê ali uma metáfora do amor. Gosta de Nete, que sofre com as reações estranhas que ele tem, no sono inquieto, de despertar com uma faca na mão, a balbuciar estranhezas sobre as visões que o assuntam. É um modo de estar que irrita a tia de Nete, Helena, papel da atriz Betty Faria, numa atuação taciturna, de movimentos corporais que lembram um bailado. Suas palavras são contidas, contadas a gotas.

A única pessoa de destaque em Abalurdes que fala muito é de um padre excomungado sempre às voltas com as bravatas de um exorcismo malfadado: Tomás (Danilo Grangheia, em atuação estonteante). O sacerdote demitido pelo Vaticano é colega de ofício de Wilson e tem por ele carinho de amigo, uma fraternidade discreta. A sabedoria dos seus tempos de batina não se faz notar tanto. Foi afogada na bebida choca que alcooliza o hálito, desqualificando unções. Dutra não vê heroísmo neles.

"Edgar Wilson sabe sobreviver - e talvez acredite ser herói em alguma medida. Ele trabalha muitas horas por dia. Faz o 'trabalho sujo dos outros', como diz Ana Paula Maia. É o tipo de tarefa que ninguém quer fazer, mas que mantém o mundo funcionando: remover os corpos de animais mortos para que os caminhos sigam abertos - como quem desentope artérias entupidas. O problema é quando o corpo morto é humano: aí o regulamento falha, e Edgar precisa improvisar. Mas não há Ítaca à vista, nem porto seguro - pelo menos não neste filme. Talvez num próximo…", promete Dutra, correalizador (com Juliana Rojas) de "Trabalhar Cansa", de 2011, e "As Boas Maneiras" (Melhor Filme no Festival do Rio de 2017 e Prêmio do Júri no Festival de Locarno).

O cineasta paulistano de 45 anos dirigiu ainda "Quando Eu Era Vivo" (2014) e "O Silêncio do Céu" (Prêmio Especial do Júri no Festival de Gramado de 2016). Concorreu ao Urso de Ouro da Berlinale, em 2020, em realização a dois com Caetano Gotardo em "Todos os Mortos". Ao se debruçar sobre os parágrafos de Ana Paula Maia, para rodar "Enterre Seus Mortos", ele bateu de frente com os males estruturais da cultura brasileira, como o fundamentalismo religioso.

"Sempre leio o fantástico e o horror como gêneros que oferecem uma certa 'caixa de ferramentas', que podemos usar de modos diferentes. Mas seguir a cartilha nunca basta. Você pode dominar a técnica do susto, o instante em que todos se encolhem na poltrona, fecham os olhos, tapam os ouvidos - mas, na minha experiência, não é sempre esse o momento que permanece. O que fica é o feitiço", explica Dutra. "Os filmes mais inquietantes são os que hipnotizam, os que não se apagam da memória. Fazer isso é uma forma de bruxaria - e, como toda bruxaria, guarda segredos que não convém revelar".