'Terra Devastada', de Frederico Machado, exorciza fantasmas maranhenses seculares num diálogo com o faroeste
Com sessão do thriller pernambucano "O Agente Secreto", às 19h40, no Espaço Petrobras 1, e do imperdível terror de CEP catarinense "Virtuosas", um pouco antes, às 18h, na sala 3 do mesmo espaço, a 49ª Mostra de São Paulo viverá uma quarta-feira de brasilidades à flor da tela - com direito a um exótico exercício maranhense pelas veredas do western. Com projeção às 20h05, no Instituto Moreira Salles da Av. Paulista, "Terra Devastada" é um "Django" metafísico, com Buda Lira em vez de Franco Nero. Sua trama se passa entre 1960 e 1970, no rastro de um pistoleiro, um andarilho silencioso, que retorna à sua cidade de origem em busca de vingança. Quando criança, ele viu seus pais serem mortos, no interior do Maranhão, por um dono de fazenda latifundiário. É hora do troco.
"O 'Terra Devastada' pode ser passado em qualquer lugar do Brasil, talvez até em qualquer lugar da América Latina", explica deu diretor, Frederico Machado. "É um filme até mesmo universal, mas tenho uma relação de amor e ódio com o meu estado. Não deixo de filmar no Maranhão por pertencer a essas terras. Não me vejo em outro local. Essa terra me segura e me alimenta. Em termos culturais, sociais, humanos, mas também me massacra. É quase uma relação masoquista. Mas o que me segura de fato em São Luís é o povo. Uma relação com o povo real que amo: os marginais, os alcoolistas do bairro da Praia Grande, os seres que vivem como fantasmas na mendigagem, os artistas malditos e errantes. A cultura popular, pobre e extremamente rica ao mesmo tempo, que sobrevive e que reverbera sua arte nas pessoas que assistem e que tentam conhecê-la".
Filho de um casal de poetas, apelidado nos festivais do Brasil de "o David Lynch da cidade de São Luís", Frederico assaltou olhos, corações e mentes da cinefilia nacional com "Litania da Velha", em 1997, e, desde então, a sua obra tem procurado redesenhar o Nordeste do Brasil através de uma estranheza que dialoga com a inquietação do realizador norte-americano por detrás de "Veludo Azul" (1986) — daí a analogia. Desde então, não apenas realizou filmes aclamados como criou festivais, montou escolas de audiovisual, abriu salas de exibição e lançou um selo de DVDs — tudo sob a chancela Lume. Sua loja online (acessível via URL www.lumestore.art.br) levou ao mercado edições digitais com joias de artesões autorais como Yasujirô Ozu (1903-1963), Barbara Loden (1932-1980), Bigas Luna (1946-2013) e Elem Klimov (1933-2003). Lançava esses clássicos enquanto filmava narrativas muito autorais como "O Exercício do Caos" (2013) e "As Órbitas da Água" (sua obra-prima, de 2020). Com "Terra Devastada", o realizador acerta contas com sua geografia de berço e com um dos gêneros de maior popularidade do cinema.
"A fantasmagoria de locais como a cidade de Alcântara e a própria São Luís do desterro estão em mim. A fabulação de locais como os lençóis maranhenses também. É um estado ainda não tocado pelo turismo e por forças externas. Não teve transformação nos seus quase 500 anos de história. Vive num marasmo, geograficamente e historicamente de não mudanças. Um limbo histórico, geográfico e social. E por isso, sinto que os mortos, o passado, estão mais presentes no meu estado. Portanto, não podia ser diferente no meu cinema", explica o diretor, autor do obrigatório livro "Um Porto No Purgatório".
Além de "Terra Devastada", o faroeste se fez presente na Mostra com "Almas Mortas" ("Dead Souls"), do inglês Alex Cox, famoso pelos cults "Repo Man - A Onda Punk" (1984) e "Sid & Nancy" (1986). Ele dirige e estrela o bangue-bangue ambientado 1890 — ano do censo dos EUA —, quando o caos irrompe pelas pradarias americanas. Ele interpreta Strindler, um sujeito misterioso, que mais tarde vai ser reconhecido como reverendo. Numa pequena cidade do Arizona, esse homem negocia dinheiro em troca de nomes de trabalhadores mexicanos mortos, numa alusão à belicosidade do presidente Donald Trump com imigrantes. A trama, baseada na prosa de Nikolai Gogol (1809-1852), chegou ao Brasil com o passaporte carimbado pelo Almería Western Film Festival, realizado na Espanha.
Ecos de faroeste se fizeram notar ainda na animação baiana "Revoada - Versão Steampunk", de Ducca Rios, na linhagem do nordestern. Esse virou um dos achados da Mostra de São Paulo, que termina nesta quinta-feira, com a projeção de "Jay Kelly", com George Clooney e Adam Sandler, e com a cerimônia de premiação.