'Foi Apenas Um Acidente', o vencedor de Cannes deste ano, chega à maratona cinéfila paulistana nesta segunda, abrindo um debate sobre as violências políticas do Irã
É dia, enfim, de o Brasil prestigiar a Palma de Ouro de 2025: "Foi Apenas Um Acidente", de Jafar Panahi, será exibido pela primeira vez no país nesta segunda (27), na Mostra de São Paulo, às 18h30, na Cinemateca Brasileira. Mais duas projeções estão agendadas. Uma rola nesta terça, às 17h15, no Cultura Artística, e outra, na quarta, às 20h40, no Reserva Cultural. Quem perder terá de esperar até 4 de dezembro, para a estreia comercial do longa-metragem, realizada numa sinergia entre as distribuidoras (e plataformas) Imovision e MUBI.
Apesar de ser iraniano, esse suspense de tônus político foi escolhido pela França (sua coprodutora) para representá-la oficialmente na apreciação da Academia de Hollywood, em busca de uma vaga na disputa do Oscar 2026 - o que amplia as chances de sucesso da produção na telona.
Aos 65 anos, Panahi já trazia no currículo o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno (dado a 'O Espelho", em 1997); o Leão de Ouro de Veneza (conferido a "O Círculo", em 2000); e o Urso de Ouro da Berlinale, atribuído a ele há dez anos, por "Táxi Teerã".
Seu histórico de vitórias divide espaço com uma profissão de fé na liberdade, marcada por múltiplas retaliações em seu país. Em 2010, foi condenado a seis anos de prisão e proibido de filmar e de sair do Irã (por 20 anos), sob a acusação de fazer propaganda contra o regime que governa sua terra natal. Apesar das restrições, no ano seguinte, realizou "Isto Não É um Filme" (2011), ambientado em seu claustro domiciliar. Acabou liberado, com o apoio da comunidade cinéfila internacional. Em 2022, quando foi laureado com o Prêmio Especial do Júri em solo veneziano, por "Sem Ursos", o diretor foi preso e só foi libertado em fevereiro de 2023, depois e fazer greve de fome.
Ao consagrar "Un Simple Accident" (título original da pérola que ele exibe agora na Mostra de SP), Cannes coroou sua resiliência na peleja para ser livre... e para denunciar intolerâncias. Ao receber o troféu francês, ele declarou publicamente o quanto o risco à sua segurança aumentou. Sua nação, há tempos, é azeda com os filmes que ele faz... e isso desde a sua estreia na realização, há 30 anos, com "O Balão Branco" (ganhador da Camèra d'Or na Croisette em 1995). Tratam sua obra como um atentado à dignidade do Irã.
O fato de "Foi Um Simples Acidente" narrar a vingança de um torturado contra o agente de estado que o vitimizou complicou ainda mais as chances de as autoridades de sua pátria festejarem sua consagração. Mas ela é merecida. Trata-se de um realizador que, há três décadas, segue a pavimentar um legado autoral no qual poesia e indignação caminham juntos, numa linha (por vezes) tênue entre ficção, etnografia, documentário e semiótica. "Para um cineasta, cada prêmio é um prazer e foi necessário muito trabalho para ganhar este troféu", disse Panahi em Cannes, com a Palma nas mãos.
"Em um determinado momento, eu tinha muitas imagens diferentes passando pela minha cabeça. Estava pensando em todos os rostos dos meus amigos que estavam na prisão comigo. Naquela época, nós estávamos na cadeia, mas o povo iraniano estava nas ruas lutando pela liberdade. Naquele momento, eu disse a mim mesmo que estava feliz por eles".
Esse thriller político toma corpo conforme o mecânico Vahid encontra por acaso o homem que acredita ter sido seu torturador na prisão, ele o sequestra decidido a se vingar. A única pista sobre a identidade desse sujeito é o som peculiar de sua perna protética. Vahid então recorre a um grupo de outras vítimas libertas em busca de confirmação, e o perigo só aumenta.
No arranque do longa, Panahi segue num carro onde um casal tenta conter uma menininha em plena euforia, com seu boneco de pelúcia preferido. Uma colisão trava o veículo. A pequena tem medo do que se passa, mas o pai a acolhe, ainda que com severidade. Nesse início tenso, ocorre o tal "simples acidente" do título, que deflagra uma cruzada de revanche sem medo de exposições gráficas da violência. "Eu aprendi com 'Táxi Teerã' a filmar em veículos em movimento. Num carro, você se sente em segurança", diz Panahi, entrando em detalhes de uma de suas detenções. "Eu fui vendado e levado para uma cela tão pequena que eu mal podia me mexer. Lá eu colhi histórias que compõem o roteiro desse meu novo filme".