Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Caco Ciocler: 'O Brasil entendeu que não tem uma cara, tem muitas'

Caco Ciocler, ator e diretor, durante sua passagem pelo Festival do Rio | Foto: Claudio Andrade/Divulgação

 

Recebido com gáudio na Mostra de São Paulo, onde passa novamente neste domingo, às 19h10, no Instituto Moreira Salles da Paulista, "Eu Não Te Ouço" - alegoria política estruturada como investigação entre viver e representar - é o quarto longa-metragem dirigido por Caco Ciocler. Ele foi o ator mais onipresente do último Festival do Rio. Brilhou inclusive no drama que venceu a Première Brasil: "Pequenas Criaturas", de Anne Pinheiro Guimarães. Levou som e fúria ainda a "Quarto do Pânico", de Gabriela Amaral Almeida, e "(Des)Controle", de Rosane Svartman e Carol Minêm. Fora isso, na competição oficial, pavimentou o caminho para que Murilo Salles presenteasse o país com uma obra-prima: "A Vida De Cada Um". Vive ali um miliciano de botar medo no Walter White de "Breaking Bad" e em qualquer mafioso da telona.

À parte disso aí (de bom) tudo, Caco dirigiu a parte (até agora) final de uma trilogia composta por "Partida" (2019) e "O Melhor Lugar do Mundo É Agora" (2021), que se chama "Eu Não Te Ouço" num indício da falta de diálogo inerente à polarização do país.

Márcio Vito, seu astro, foi laureado com o prêmio de Melhor Ator na mostra Novos Rumos do Festival do Rio por um desempenho especular, inspirado num bolsominion que se agarrou a um caminhão a fim de atrair simpatia para seu Messias e no caminhoneiro que testemunhou sua imolação.

Neste momento de apogeu profissional, numa carreira que jamais desgrudou do teatro, Ciocler fala ao Correio da Manhã do que busca ao filmar narrativas que fingem ser documentários para parecer que são encenações.

Seu "teatro político em forma de filme" fez do Brasil uma Tebas, qual a terra de "Édipo Rei", onde as tragédias que nos fincam a moiras ancestrais (leia-se coloniais) seguem a assombrar nosso porvir, nosso futuro. O que essas investigações cinematográficas apontam para você como alternativa para o barco encalhado numa política de ódios que é a polarização do país? Seus filmes como diretor são catarses ou são saídas, nesse teu projeto estético?

Caco Ciocler - É curioso pensar se esses trabalhos são catarses ou saídas. No meu filme anterior, "O Melhor Lugar do Mundo é Agora", há uma fala da Cláudia Missura em que ela diz que, antigamente, o teatro era receitado por médicos. Você se consultava e eles diziam: "Você precisa de uma tragédia, você precisa de uma comédia." A catarse nasceu com essa função de cura. Ou seja, a catarse tem serventia, a catarse modifica. Sim, esses meus filmes foram catarses. Elas nasceram de uma necessidade bonita de responder — não no sentido de dar uma resposta, mas de reagir — a três momentos bastante perturbadores, recentes. Quis responder artisticamente. Não estava mais me contentando em responder nas redes sociais, como cidadão; eu queria entender o que o meu eu artista tinha a dizer. Não como resposta, mas como reação. Coloquei-me nesse estado, nessa provocação catártica — no sentido da cura, da possibilidade de experienciar a angústia de maneira criativa. Nesse sentido, são catarses e também saídas. Porque, a partir do momento em que você elabora uma angústia e transforma isso numa obra que não dá respostas, mas inaugura novas perguntas, já é uma saída.

O que um ator como o Márcio Vito te oferece de mais vívido e de mais provocador numa experiência audiovisual?

Eu sempre me coloco no lugar de um documentarista oculto que está descobrindo o universo dos entrevistados — nessa mistura constante de ficção e documentário. Preciso de pessoas que topem esse jogo da criação comigo. O Márcio Vito é um ator extremamente inteligente, intuitivo, corajoso, rápido, e que aceita esse lugar de experimentação. Claro que não é uma experimentação total; existe um norte, um preparo. Mas o cinema que venho fazendo exige que eu não saiba de tudo. Não à toa, eu sempre apareço nesses filmes como alguém que está, de fato, investigando algo que não sabe. O Márcio me oferece esse jogo — e não é qualquer um que oferece —, o jogo de se deixar ser investigado em cena. Isso exige muita coragem, e ele é extremamente corajoso.

E como se dá o processo com ele na prática?

Quando fiz "O Melhor Lugar do Mundo É Agora", eu provocava os atores e atrizes e dizia: "Quando você estiver pronto, me avisa, e a gente marca a entrevista." Assim que contei isso ao Vito, ele respondeu: "Não, eu quero fazer agora." Eu disse: "Mas você tem que se preparar." E ele insistiu: "Não, eu já entendi o que quero fazer." Fizemos um exercício de improvisação que durou uma hora e meia, com uma genialidade inacreditável. Nos primeiros cortes, o filme era praticamente o Vito, de tão brilhante que ele foi. Tivemos que equilibrar. Desde então, percebi que precisava fazer uma experiência só com ele.

Você reinou sobre a Première Brasil e segue a trilhar espaços, agora na Mostra de São Paulo. A vitória de Anne Pinheiro Guimarães no Festival do Rio, com "Pequenas Criaturas" leva você com ela. O que esses filmes te mostram sobre o atual estado de coisas do nosso cinema?

Eu responderia com uma palavra: diversidade. Houve um tempo em que o cinema brasileiro tentava achar uma cara. Achamos essa cara. Mas agora entendemos que são várias. Eu fiz filmes muito diferentes e, ao olhar, percebo o quanto são diversos. Isso é o mais bonito: o Brasil entendeu que não tem uma cara, tem muitas, e está apostando nelas, fazendo cada vez melhor — em termos de linguagem, de conteúdo, de investigação. O cinema brasileiro está livre. Cada vez mais livre. E isso é lindo, porque a gente não faz filme para acertar, faz filme para investigar, para inaugurar perguntas. As pessoas estão usando o cinema para se autoprovocarem — e, por isso, estão mais livres. O cinema brasileiro, livre, é mais potente.