Depois do Oscar dado a "Ainda Estou Aqui" e após o fenômeno pop que "O Agente Secreto" virou, o universo repressivo da ditadura brasileira, nos anos 1970, vem mobilizando as maiores mostras internacionais da indústria audiovisual, a incendiar novas miradas sobre os porões da tortura e sobre controle estatal. Na 49ª Mostra de São Paulo, essa discussão vai ganhar corpo, poesia e, principalmente, um nome: "Honestino". Fusão de raro equilíbrio entre documentário e ficção, o longa-metragem do diretor amazonense Aurélio Michiles, com foco na luta do líder estudantil Honestino Guimarães (sequestrado em 1973, aos 26 anos), ferveu o Festival do Rio de 2025 em debates políticos de alta temperatura. Saiu do cine Odeon com o troféu Redentor de Melhor Montagem. Por uma toada de taquicardia, a edição de André Finotti, que assina o roteiro com Michiles, funde uma série de arquivos com dezenas de depoimentos de familiares, amigos e militantes num mosaico que se abre para a encenação, com o ator Bruno Gagliasso, em desempenho inflamável, no papel título.
A Mostra receberá esse coquetel Molotov de memória e indignação no dia 22, às 19h30, na sala 1 do Espaço Petrobras De Cinema, com mais uma projeção no dia 28, às 16h30, no Reserva Cultural 1. A cada sessão, sua trilha sonora, composta por Flavia Tygel, vai grudar nos tímpanos, com seu requinte melódico raro. É um biopic sobre um herói da resistência, mas é também um tratado "autogeográfico" sobre a geração de Michiles, que nasceu em Manaus, em 1952.
Formado em Arquitetura pela Universidade de Brasília e em Artes Cênicas pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Michiles dirigiu filmes como "O Cineasta da Selva" (1997), "Teatro Amazonas" (2002) e "Segredos do Putumayo" (2020), premiado pela APCA em 2022. Atuou também na TV e hoje vive em terras paulistanas. Por e-mail, ele explicou ao Correio da Manhã a bússola de esperança que guia "Honestino".
Qual foi a primeira vez em que o nome do Honestino mobilizou suas atenções?
Aurélio Michiles - A história de Honestino Guimarães ou "Gui" (era como todos nós o conhecíamos) sempre esteve entre os meus projetos para realizar um filme. Quando cheguei em Brasília, em 1968, aos 16 anos, vindo de Manaus junto com amigos - um deles é o hoje escritor Milton Hatoum -, logo conseguimos criar relações de amizades no movimento estudantil secundarista (ensino médio). Ali, o Honestino já era a grande referência, o líder estudantil da UnB, a Universidade de Brasília. Inclusive o quarto que alugamos na W3-Sul, servia de refúgio para as reuniões clandestinas organizadas pelo Honestino.
Como foi o processo de direção de Bruno Gagliasso para a criação da persona de Honestino, numa relação de simbiose com os depoimentos e com as imagens de arquivo?
A simbiose principal foi a conexão entre o diretor e o ator. Como se diz, aconteceu uma química, e, a partir daí, foram conversas e trocas de mensagens (cartas pessoais e poemas do Honestino) e arquivos (fotos). O Bruno assimilou a atmosfera da personagem e incorporou em momentos distintos a dramaticidade narrativa do filme. O meu trabalho de diretor foi sempre lembrá-lo que o personagem não era triste, mas ao contrário, alegre, carismático.
De que maneira o teu filme dialoga, de modo consciente, com os registros anteriores que o cinema brasileiro fez da ditadura? O que significa fazer um documentário sobre nossa épica política nos tempos polarizados de hoje?
O filme "Honestino" conscientemente segue na busca em querer refletir sobre um período ditatorial vivido pela minha geração. Honestino Guimarães foi assassinado aos 26 anos. Foi um líder estudantil que se recusou a se exilar para manter viva a resistência do movimento estudantil, e isso faz dele uma referência, um exemplo para as novas gerações. No Brasil atual, quando muitos querem reescrever a nossa história, cada filme realizado sobre aquela época é uma luz que ilumina a escuridão do silenciamento. Isso nos faz querer continuar a falar sobre o que foram aqueles anos de violência e intolerância.