Fenômenos de bilheteria, clássico restaurado e longa latino oscarizável fecham a tampa da 27ª edição da maratona cinéfila carioca, em seu último dia de Repescagem
Vencedores da Première Brasil com "Ato Noturno", "No Coração das Trevas" e "Dona Onete - Meu Coração Neste Pedacinho Aqui" terão passagem pela Mostra de São Paulo a partir desta quinta-feira, mas ainda tem Festival do Rio na área, in loco, em casa, nesta quarta, com direito a votação do prêmio de júri popular para as mostras Expectativa e Première Latina. As boas do derradeiro dia de prorrogação da 27ª maratona carioca destacam a força da produção latina, com o fenômeno de bilheteria portenho "Homo Argentum", de Mariano Cohn e Gastón Duprat, às 16h30, no Estação NET Botafogo.
Essa comédia contabilizou 1.080.000 ingressos vendidos em suas duas primeiras semanas em cartaz na pátria de Javier Milei. Seu chamariz é Guillermo Francella, astro de "O Clã" (2015) e da série de sucesso "Meu Querido Zelador" (2022-2024). Ele dá o ar de sua graça ao se dividir (com ardor) entre 16 personagens num mosaico de retratos da vida de seu país.
No próprio Estação da Voluntários da Pátria nº 88 reside a chance de a população do RJ ver em telona, às 19h, uma das principais apostas da Netflix deste fim de ano: "Balada de um Jogador", de Edward Berger. A plateia há de quicar nas poltronas ao acompanhar Lorde Doyle, aristocrata arruinado (vivido por um Colin Farrell nas raias do esplendor) que se afoga em dívidas de jogo, levado pelos impulsos da ludopatia. A compulsão pelo jogo é a sua desgraça, mas o roteiro de Rowan Joffe não se limita a chorar mágoas: endividado até à espinha, Doyle deseja sair de cena de cabeça erguida. "Doyle é uma alma perdida, com uma bússola moral que já não existe, sob a pressão de um vazio na sua existência", disse Farrell ao Correio da Manhã no Festival de San Sebastián, onde o longa disputou a Concha de Ouro.
Com credores no seu encalço, Doyle refugia-se em Macau, passando dias e noites nos casinos, a beber vodca e a jogar os trocos que lhe restam. Uma ajuda inesperada surge de Dao Ming (Fala Chen), funcionária da casa de jogo que mais frequenta, reacendendo instintos adormecidos. Mas cada passo seu é seguido por Cynthia Blithe, investigadora privada (interpretada por uma Tilda Swinton mais contida, mas afetuosa), determinada a cobrar-lhe as dívidas. Apesar da ciranda de perigos, magnificamente amplificada pela direção de fotografia exuberante de James Friend, Doyle não abdica do verbo "tentar".
Às 14h45, ali pelo Estação NET Gávea, quem quiser voltar no tempo até a década de 1970, vai se deliciar com a projeção da cópia restaurada de "Apocalypse Now", que rendeu a Palma de Ouro a Francis Ford Coppola em 1979, ao esquadrinhar a Guerra do Vietnã.
No fim do dia, no Estação NET Rio 5, às 21h15, daremos o bye, bye definitivo ao Festival do Rio conferindo o vencedor dos Horizontes Latinos de San Sebastián: "Um Poeta", que põe o cinema da Colômbia no epicentro da temporada de premiações rumo ao Oscar. Fazia tempo que uma produção colombiana não arrasava os quarteirões das premiações do cinema mundial do modo como faz o Hermano Simón Mesa Soto, numa direção irretocável.
A última vez em que aquela nação foi listada entre as sensações cinematográficas de uma temporada foi há dez anos, quando "O Abraço da Serpente", de Ciro Guerra, explodiu na Quinzena de Cineastas de Cannes. Em 2022, houve outra lufada de êxito vinda de lá, com "Los Reyes Del Mundo", de Laura Mora, que ganhou a Concha de Ouro, na já citada San Sebastián. No entanto, a onda de entusiasmo que "Um Poeta" gera não parece ter igual entre os acertos autorais da pátria que emplacou joias como "A Vendedora de Rosas" (1998), de Victor Gaviria.
Sua trama é protagonizada por Oscar Restrepo, um trovador fracassado. Na trama filmada em Super 16mm pelo realizador de "Leidi" (Palma de Ouro de Curta de Cannes em 2014), Oscar (interpretado com fluidez por Ubeimar Rios, um ator não profissional) teve a chance de lançar dois livros e de dar aulas, o que, nem de longe, aplaca seu apetite por prestígio. A pátria de Gabriel García Márquez viu brotar muitos faróis na literatura. Oscar almeja ser um. Se bebesse menos, era mais fácil chegar lá e não estaria, já quarentão, à mercê do quarto que tem na casa da mãe, rejeitado por entes queridos que poderiam amá-lo. O verbo "desistir" é imposto pela vida a Oscar como um norte inescapável. A crença de que o poema pode levar quem escreve e quem lê à transcendência é o único combustível do seu sonho e da sua coragem. Essa gasolina parece encher também o tanque de uma jovem, Yurlady (Rebeca Andrade), que demonstra ter um talento nato para metáforas, metonímias, aliterações, zeugmas e manhas do vernáculo. Na Medellín filmada por Mesa Soto numa fronteira ténue do naturalismo, ela é um indício de que a chama da invenção lírica arde onde o determinismo económico impõe silêncio e ausência.
A produção fecha com gana e graça um Festival do Rio que lotou 25 cinemas desta metrópole.