Por: Affonso Nunes

O humor contra os podres poderes

Apparicio Torelly, o Barão de Itararé, percursor do humor político no Brasil | Foto: Reprodução

Documentário 'O Brasil que não Houve' retrata Apparício Torelly, criador do jornal 'A Manha' e precursor da sátira jornalística nacional

O humor político brasileiro tem suas raízes fincadas na figura singular do jornalista Apparício Torelly (1895-1971), mais conhecido como Barão de Itararé, personagem central do documentário-comédia "O Brasil que não Houve - As Aventuras do Barão de Itararé no Reino de Getúlio Vargas", reve sua estreia mundial na Festa Literária de Paraty (Flip), foi exibido no Festival do Rio e que chega ao canal Curta! no próximo dia 25.

Dirigido e roteirizado por Renato Terra e Arnaldo Branco, com narração de Gregorio Duvivier, o filme resgata a trajetória do humorista que se tornou o grande nome do "jornalismo mentira, humorismo verdade" durante a Era Vargas. Seu jornal A Manha pode ser considerado o pai do Pasquim, o avô do Casseta & Planeta e o bisavô do portal Sensacionalista.

A verve satírica do autoproclamado Barão revelou verdades que o jornalismo tradicional de sua época ocultou.

Irreverência que custou caro

Getúlio Vargas, que presidiu o país em períodos autoritários e democráticos, era o maior alvo do humor ácido e corrosivo do Barão de Itararé | Foto: Divulgação

Num período em que o Rio de janeiro, então capital federal, possuía mais de 60 jornais, o gaúcho Apparício Torelly comandava o jornal "A Manha", publicação satírica que ridicularizava a imprensa, os costumes e os políticos da época com uma irreverência que custou caro ao seu criador.

Preso três vezes por suas piadas, o Barão acumulou mais de dois anos de cadeia, numa época em que humoristas eram literalmente cancelados pelo Estado autoritário. "O Barão é de uma época em que os humoristas eram cancelados de verdade e nem podia botar culpa no politicamente correto", observa Arnaldo Branco, que assina seu primeiro documentário após sete temporadas escrevendo para o Greg News. A presença de Branco e Duvivier no projeto leva o documentário a assumir uma narrativa que muito se assemelha ao antigo programa apresentado pelo humorista, traçando uma inevitável linha de parentesco com o lendário barão.

 

"Se há um idiota no poder, é porque os que o elegeram estão bem representados"

Apparício Torelly, o Barão de Itararé

 

A genialidade de Torelly estava em revelar verdades através daquilo que parceia absurdo. Em seu jornal satírico, ele demonstrava que a cobertura jornalística da época já era uma piada, enquanto suas piadas revelavam mais do que o jornalismo sério. Sua análise da Revolução de 1930 como uma "divergência entre os membros da mesma classe dominante" revela perspicácia política disfarçada de humor. Jorge Amado reconheceu sua importância ao escrever que "não houve no Brasil escritor mais unanimemente lido e admirado do que o humorista cujo riso, ao mesmo tempo bonachão e ferino, fazia a crítica aguda e mordaz da sociedade brasileira".

O pseudônimo Barão de Itararé nasce de um episódio emblemático da história brasileira: a famosa batalha que não aconteceu durante a Revolução de 1930. Tropas leais ao governo Washington Luís rumaram para a cidade paulista de Itararé para enfrentar soldados getulistas, criando expectativa de um confronto sangrento que prometia ser o prenúncio de uma guerra civil. Como descreveu o poeta Murilo Mendes, "Itararé, a maior batalha da América do Sul não houve" - foi cancelada por um acordo político. Com quase vinte anos de carreira, Torelly inspirou-se nessa batalha inexistente para se autoconceder um título de nobreza igualmente fictício.

Renato Terra, diretor de documentários como "Uma Noite em 67" e "O Canto Livre de Nara Leão", explica a escolha do formato: "Foi fundamental trazer o espírito bem-humorado do Barão de Itararé para contar essa história. A trajetória do Barão e seus confrontos com o governo de Getúlio Vargas são contados pela lente do humor". Essa abordagem vai além do resgate histórico para traçar paralelos com o Brasil do século 21.

Getúlio Vargas e os integralistas foram seu principal alvo, mas não havia líder político ou militar que não se tornasse objeto do humor ácido e debochado deste frasista genial. Suas máximas inauguram uma linhagem de humor que passa perlo Pasquim, Casseta & Planeta, chegando até o Sensacionalista. Seus comentários seguem atuais, como "De onde menos se espera é que não surge nada mesmo" ou "O que se leva desta vida é a vida que a gente leva".

Arnaldo Branco e Renato Terra fugiram da narrativa tradicional de documentários e optaram por um recorte minucioso das tretas de Torelly com Vargas. Aspectos de sua vida pessoal ficam reduzidos a uma sequência batizada como Momento Documentário que, à exceção dos períodos de prisão do Barão, passa ao largo de sua conturbada vida pessoal como a perda de duas mulheres e uma filha.

Numa época de censura férrea e repressão sistemática, o Barão de Itararé descobriu que o riso funcionava como uma linguagem cifrada capaz de burlar a vigilância oficial, permitindo que críticas devastadoras ao regime circulassem disfarçadas de piadas aparentemente inofensivas. Sua estratégia revelava a potência subversiva do humor como arma política: ao ridicularizando o poder constituído, o Barão denunciava suas contradições e mostrava que ditadores podem temer mais o ridículo que a oposição frontal. Sob os escombros de uma batalha inexistente, foi o cronista oficial de um Brasil que não houve - mas que, paradoxalmente, segue existindo com suas contradições seculares.

 

Algumas máximas do Barão

Barão de Itararé | Foto: Reprodução

A criança diz o que faz, o velho diz o que fez e o idiota o que vai fazer.

Os homens nascem iguais, mas no dia seguinte já são diferentes.

Dizes-me com quem andas e eu te direi se vou contigo.

Sábio é o homem que chega a ter consciência da sua ignorância.

Não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar.

O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro.

De onde menos se espera, daí é que não sai nada.

Pobre, quando mete a mão no bolso, só tira os cinco dedos.

O banco é uma instituição que empresta dinheiro à gente se a gente apresentar provas suficientes de que não precisa de dinheiro.

Tudo seria fácil se não fossem as dificuldades.

Este mundo é redondo, mas está ficando chato.

Tudo é relativo: o tempo que dura um minuto depende de que lado da porta do banheiro você está.

Devo tanto que, se eu chamar alguém de "meu bem", o banco toma!

O voto deve ser rigorosamente secreto. Só assim, afinal, o eleitor não terá vergonha de votar no seu candidato.

Negociata é um bom negócio para o qual não fomos convidados.

Quem não muda de caminho é trem.