Num período em que o Rio de janeiro, então capital federal, possuía mais de 60 jornais, o gaúcho Apparício Torelly comandava o jornal "A Manha", publicação satírica que ridicularizava a imprensa, os costumes e os políticos da época com uma irreverência que custou caro ao seu criador.
Preso três vezes por suas piadas, o Barão acumulou mais de dois anos de cadeia, numa época em que humoristas eram literalmente cancelados pelo Estado autoritário. "O Barão é de uma época em que os humoristas eram cancelados de verdade e nem podia botar culpa no politicamente correto", observa Arnaldo Branco, que assina seu primeiro documentário após sete temporadas escrevendo para o Greg News. A presença de Branco e Duvivier no projeto leva o documentário a assumir uma narrativa que muito se assemelha ao antigo programa apresentado pelo humorista, traçando uma inevitável linha de parentesco com o lendário barão.
"Se há um idiota no poder, é porque os que o elegeram estão bem representados"
Apparício Torelly, o Barão de Itararé
A genialidade de Torelly estava em revelar verdades através daquilo que parceia absurdo. Em seu jornal satírico, ele demonstrava que a cobertura jornalística da época já era uma piada, enquanto suas piadas revelavam mais do que o jornalismo sério. Sua análise da Revolução de 1930 como uma "divergência entre os membros da mesma classe dominante" revela perspicácia política disfarçada de humor. Jorge Amado reconheceu sua importância ao escrever que "não houve no Brasil escritor mais unanimemente lido e admirado do que o humorista cujo riso, ao mesmo tempo bonachão e ferino, fazia a crítica aguda e mordaz da sociedade brasileira".
O pseudônimo Barão de Itararé nasce de um episódio emblemático da história brasileira: a famosa batalha que não aconteceu durante a Revolução de 1930. Tropas leais ao governo Washington Luís rumaram para a cidade paulista de Itararé para enfrentar soldados getulistas, criando expectativa de um confronto sangrento que prometia ser o prenúncio de uma guerra civil. Como descreveu o poeta Murilo Mendes, "Itararé, a maior batalha da América do Sul não houve" - foi cancelada por um acordo político. Com quase vinte anos de carreira, Torelly inspirou-se nessa batalha inexistente para se autoconceder um título de nobreza igualmente fictício.
Renato Terra, diretor de documentários como "Uma Noite em 67" e "O Canto Livre de Nara Leão", explica a escolha do formato: "Foi fundamental trazer o espírito bem-humorado do Barão de Itararé para contar essa história. A trajetória do Barão e seus confrontos com o governo de Getúlio Vargas são contados pela lente do humor". Essa abordagem vai além do resgate histórico para traçar paralelos com o Brasil do século 21.
Getúlio Vargas e os integralistas foram seu principal alvo, mas não havia líder político ou militar que não se tornasse objeto do humor ácido e debochado deste frasista genial. Suas máximas inauguram uma linhagem de humor que passa perlo Pasquim, Casseta & Planeta, chegando até o Sensacionalista. Seus comentários seguem atuais, como "De onde menos se espera é que não surge nada mesmo" ou "O que se leva desta vida é a vida que a gente leva".
Arnaldo Branco e Renato Terra fugiram da narrativa tradicional de documentários e optaram por um recorte minucioso das tretas de Torelly com Vargas. Aspectos de sua vida pessoal ficam reduzidos a uma sequência batizada como Momento Documentário que, à exceção dos períodos de prisão do Barão, passa ao largo de sua conturbada vida pessoal como a perda de duas mulheres e uma filha.
Numa época de censura férrea e repressão sistemática, o Barão de Itararé descobriu que o riso funcionava como uma linguagem cifrada capaz de burlar a vigilância oficial, permitindo que críticas devastadoras ao regime circulassem disfarçadas de piadas aparentemente inofensivas. Sua estratégia revelava a potência subversiva do humor como arma política: ao ridicularizando o poder constituído, o Barão denunciava suas contradições e mostrava que ditadores podem temer mais o ridículo que a oposição frontal. Sob os escombros de uma batalha inexistente, foi o cronista oficial de um Brasil que não houve - mas que, paradoxalmente, segue existindo com suas contradições seculares.