Wim Wenders acaba de chegar aos 80 anos e emenda um curta-metragem autoral atrás do outro, sendo que "The Keys to Freedom", recém-finalizado, é o trabalho mais recente de uma carreira consagrada com a Palma de Ouro, em 1984, por "Paris, Texas". Em meio ao aniversário do diretor alemão, uma versão restaurada desse cult começou a correr telas do mundo, com exibição de gala até no Festival de Cannes, onde construiu sua fama, quatro décadas atrás.
No circuito carioca, uma série de salas de projeção abriu suas telas para uma revisão histórica dessa produção de US$ 1,5 milhão. Tem sessões no Cine Santa Teresa (às 19h45), no Estação NET Botafogo (18h e 21h) e no Cinesystem Belas Artes (15h30, 18h20 e 21h10) nesta terça e na quarta. Muitos consideram essa narrativa um marco da estética on the road, de pé na estrada.
Ao ser laureado com um prêmio honorário do Júri Ecuménico de Cannes, em 2024, pelo conjunto de uma trajetória pela criação artística iniciada em 1967, Ernst Wilhelm Wim Wenders assumiu: "Nós, cineastas, não podemos mudar o mundo, mas podemos mudar a imagem que fazemos do planeta".
Na ocasião, ele havia acabado a montagem do filme "Alguém Vem À Luz" ("Somebody Comes Into The Light"), realizado em paralelo às filmagens de "Dias Perfeitos" ("Perfect Days", pelo qual concorreu ao Oscar), com o dançarino Min Tanaka. Entre as mudanças mais radicais que sua obra proporcionou à forma como o audiovisual representa a realidade está a maneira de enquadrar o vazio existencial de um mundo que se despedia das filosofias modernas para entrar na pós-modernidade, o que se vê em "Paris, Texas".
"Eu venho de uma escola de cinema independente, de uma prática lá dos anos 1960 e 70 de parcos recursos. É assim que invento", disse Wenders ao Correio da Manhã, em Cannes, ao explicar os dribles que teve de fazer para filmar "Paris, Texas" nos EUA. "Quando chegamos na Croisette pra disputa pela Palma de Ouro, o filme havia acabado, literalmente, de ser finalizado, pois o material que tínhamos para apresentar foi revelado nas vésperas da exibição".
A versão de "Paris, Texas" que está em cartaz no Brasil partiu de uma cópia restaurada digitalmente, com o negativo original 35mm aprimorado em 4K na L'Immagine Ritrovata, em Bolonha, com apoio financeiro do CNC. A restauração e a correção de cor foram realizadas na Basis Berlin Postproduktion, com apoio da Chanel e do Programa de Financiamento do Património Cinematográfico Alemão (FFE).
A trama abre com planos de desolação. No meio do nada, um homem magro, de terno escuro e boné de beisebol vermelho surge no calor escaldante do deserto entre os Estados Unidos e o México. O seu nome é Travis (papel de Harry Dean Staton). Ele bebe um último gole de água e segue em frente, obstinadamente, para uma região inóspita que os moradores chamam de "Parque do Diabo". Travis pode parecer mudo e perdido, mas é movido pelo desejo de se reconectar com a família.
O roteiro foi estruturado a partir de um trabalho com o ator e do dramaturgo Sam Shepard (1943-2017), que estava no apogeu de sua fama. Cerca de dois anos antes de "Paris, Texas", Wenders tentou que esse autor teatral trabalhasse em seu filme "Hammett", de 1982, mas não teve êxito no convite. Contudo, Shepard concordou que eles adaptassem livremente um de seus melhores escritos, "Motel Chronicles". Acabaram por desenvolver uma história sobre dois irmãos, um dos quais havia perdido a memória. Esse projeto cresceu para 160 páginas, o relacionamento dos irmãos perdeu importância e vários finais foram considerados.
Uma releitura posterior desses escritos gerou o "Paris, Texas" que conhecemos hoje. "Tento dar espaço a histórias em que as rotinas do dia a dia se expressem poeticamente", disse Wenders no jardim de um hotel em Cannes.
Ao longo de sua dedicação à telona, ele foi agraciado com indicações aos prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood três vezes pelas suas incursões ao terreno da não ficção. Concorreu com "Buena Vista Social Club" (1999), no qual revisita a música cubana. Depois, foi à festa hollywoodiana com "Pina" (2011), sobre a coreógrafa Pina Bausch. Em 2015, chegou ao Brasil, realizando em dupla com Juliano Salgado "O Sal da Terra", um trabalho fotográfico e antropológico sobre Sebastião Salgado. Há algum tempo que o artesão existencialista por trás de pérolas como "Asas do Desejo" (1987) não fazia uma ficção tão boa quanto "Dias Perfeitos", rodado no Japão, e hoje disponível na MUBI. A personagem central dele é um zelador que limpa casas de banho públicas, ouve rock em fitas K-7, lê livros e gosta da sua rotina de vida.
"Talvez eu seja analógico", diz Wenders. "Sou dos tempos dos discos de vinil e ainda ouço rock'n'roll neles. Sou do tempo em que se ouvia o mesmo LP durante semanas".