Première Brasil 2025 chega ao fim aproximando a produção nacional do cinema de gênero e refletindo pautas urgentes, com direito a um filme de máfia monumental de Murilo Salles
Faltam dois longas-metragens de ficção para a seleção competitiva pelo troféu Redentor desta Première Brasil concluir seu mapeamento das diferentes desinências do verbo "reivindicar": às 19h15, no Estação NET Gávea, tem "Virtuosas", de Cintia Domit Bittar, e às 21h45, "Pequenas Criaturas", de Anne Pinheiro Guimarães. O primeiro é um terror egresso de Santa Catarina, forjado sob as reflexões antimachistas da diretora de "Qual Queijo Você Quer?", melhor curta-metragem do Festival do Rio de 2011. O segundo revive a Brasília de 1986 para propor um balanço do que a gente foi quando este país tinha apenas um ano de redemocratização.
Ambas as diretoras prometem impacto. Aliás o que não faltou, no que se assistiu de curtas e de longas inéditos na produção nacional, foram retratos impactantes do nosso pretérito imperfeito e do nosso presente afoito de esperança, com destaque para o auspicioso "Apolo", uma love story disfarçada de documentário. Feita por Tainá Müller e Isis Broken, ela desafia a transfobia ao narrar a chegada de um bebê num mundo onde ter um nome social referendado... e acolhido... é digno de "Missão: Impossível". Há outras 47 produções concorrendo a prêmios no Festival do Rio, em latitudes distintas. Ganhe qual ganhar, um desses concorrentes... descoberto pelo público desta cidade na segunda-feira... já pode ser considerado (no mínimo) inescapável, não apenas por trazer as potências de seu realizador no grau máximo da ousadia, mas por assegurar à 27ª maratona cinematográfica desta metrópole seu personagem mais complexo: o tenente Macedo, vivido por um Caco Cicoler nas raias do esplendor. Ele prenuncia as trevas de nossa pátria em "A Vida de Cada Um", de Murilo Salles.
Há 30 anos, o cineasta, grife de excelência da fotografia, com "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976) no currículo de títulos que iluminou, radiografou a desconexão entre "asfalto" e "favela" em "Como Nascem Os Anjos" (1996), um filme de alerta. À época, em meio a confrontos entre a PM e o tráfico por todo o Rio, com o agravamento das cizânias no Complexo do Alemão pós assassinato do chefão do crime Orlando Jogador (1959-1994), Murilo mostrou que os dispositivos de controle da aristocracia da Zona Sul Maravilha não captavam o que havia de demasiadamente humano a seu redor. Em "A Vida de Cada Um", o que está em pauta é a reorganização de nossa geografia pelas células milicianas, partindo de datas limítrofes. Em seu enredo, digo de épico, como "O Poderoso Chefão" (1972), estão 1994 (ano do tetra na Copa do Mundo e do início do império do traficante Uê na Zona Norte); 2014 (ano do BRT e do 7 x 1 pra Alemanha); e 2016 (o Golpe, com direito a resgate da votação do Impeachment). A era Jair Bolsonaro foi chocada ali, quando o regime de governo do Brasil deixou de ser presidencialista e virou... miliciano.
É do Morro do Andaraí que esse panóptico, editado como um quebra-cabeça de encaixe pleno pela montadora Eva Randolph, desenha-se na tela. Macedo é o Don Corleone desse mundo e Caco Ciocler, colossal, faz dele um ferrabrás que tem seu lado manteiga, com o tique de mexer as pedras de gelo de seu uísque com os dedos. Autoridade fardada, ele botou a mulher para fora de casa a tapas, criou os dois filhos no garrote, impôs disciplina à sua vizinhança e ocupou espaços que antes era baldios. Só não implementou uma UPP no coração de sua filha, Flávia, o papel mais denso já oferecido à atriz Bianca Comparato na telona - e compensado com um primor de atuação.
Vemos Flávia em diferentes fases de sua vida, com direito a um introito lá em 1989, com o Papai Smurf (dublado por Silvio Navas) num desenho do "Xou da Xuxa", enquanto ela e seu irmão testemunham Macedo chegando do plantão e brandando regras. Vai ser assim sempre, nas três décadas que se seguem até Flávia, sem grana, resolver se lançar no comércio da cocaína e desafiar a vontade de um pai que nunca perdoou.
Laços de família se lavam a sangue nessa narrativa, que se impõe pela geometria euclidiana de sua montagem e pela natureza de Comédia Humana (à la Balzac) de sua fauna de personagens. No entanto, o que mais (e melhor) impressiona é o fato de Murilo ter feito um "filme de máfia", pois se trata de um "Os Bons Companheiros" no Andaraí, com Ciocler em devir Robert De Niro. Estenda essas aspas a séries desse filão, pois é um "Breaking Bad" do subúrbio, o "Tulsa King" da Cidade Partida, com luminosa atuação de Ivan Mendes no papel do policial apaixonado Geraldo. Essa percepção acende a primeira luz sobre o legado simbólico desta Première Brasil na qual havia sempre uma subjetividade a reivindicar politicamente o que deveria ser seu, seja o benquerer; o respeito do Estado; uma maternidade segura... e inclusiva; a extinção do sexismo; direitos autorais sobre uma expressão artística; um Greencard; e uma governança democrática, tema do devastador "Honestino", balanço da ditadura feito por Aurélio Michiles com base num herói de 1968, que Bruno Gagliasso interpreta bem à beça.
Essas reivindicações todas vieram, em sua maioria, amparadas num registro de gênero, como Murilo fez... à sua personalíssima maneira... em "A Vida De Cada Um". O fato de a arrancada da disputa pelo Redentor ter se dado com uma aventura distópica feita em animação, com alusões a "Apocalypse Now" - o resfolegante "Coração das Trevas", de Rogério Nunes - já evidencia um sentimento de aproximação de nosso audiovisual com as cartilhas de gênero. Mais explícito do que incluir um filme de vampiro em seu certame (o nerdíssimo "Love Kills", de Luiza Shelling Tubaldini), impossível. Aliás... um filme de vampiro (bem rodado) derivado de HQs, egresso da graphic novel do paulista Danilo Beyruth, num aceno para novas formas de conexão com plateias - até aquelas que ainda não prestigiam nosso cinema como deveriam.
Em sua salada de gêneros, a Première se abriu para o registro musical na competição, só que por vias documentais, com dois banhos de descarrego: "Massa Funkeira", de Ana Rieper, e "Meu Coração Neste Pedacinho Aqui - Dona Onete", (um filme fofo como ele só) de Mini Kerti.
Sua programação não abriu mão de vitaminar nossas células melodramáticas, talhadas por muita telenovela, e exibiu o rasga-miocárdio "Dolores", de Maria Clara Escobar e Marcelo Gomes, que importou lá do Festival de San Sebastián. É um folhetim, mas é também uma visita às estruturas do "cinema carcerário", ao observar a vida no entorno de uma prisão, com foco em três mulheres: mãe, filha e neta. A matriarca, cujo nome dá título a um enredo deixado como herança pelo cineasta Chico Teixeira (1958-2019), é uma jogadora compulsiva que sonha ter um cassino. Carla Ribas solta os diabos todos que tem em si ao compor essa apostadora como uma diva, numa atuação estonteante, rodeada por um elenco de alto quilate, no qual Roney Villela é um astro rei, no papel do latin lover Bigode.
A apoteose das atuações neste Festival do Rio gravitou alto, saindo das CNTPs na forma como Luiza Mariani modula o drama em "Cyclone", lançado em agosto na 27ª edição do Shanghai International Film Festival, em telas chinesas, e só agora exibido aqui. Mais do que uma interpretação em estado de graça, o filme traz uma direção em maturidade absoluta de Flavia Castro. No enredo, a diretora de "Diário De Uma Busca" (2010) acompanha a história de Dayse (papel de Luiza), operária de uma gráfica que almeja ser reconhecida como dramaturga na conservadora São Paulo do início do século XX. Sua inspiração (livre) é Maria de Lourdes Castro Pontes (1900-1919), autora chamada alternadamente de Deisi, Daisy, Dasinha, Miss Tufão e Miss Cyclone. O que se vê ali é o balanço de uma cidade feroz, SP, nas raias da Semana de Arte Moderna. A fotografia de Helô Passos, dionisíaca, busca nas cores a tradução da ebulição vulcânica da protagonista.
Se nos longas, as proficiências de Flavia Castro no comando do set saltaram aos olhos, nos curtas, Milena Manfredini confirmou (mais uma vez) que está em fase de apogeu criativo ao dirigir "Laudelina e a Felicidade Guerreira", sobre uma ativista das lutas decoloniais. Cabe ressaltar também o quanto Rosana Urbes desenvolveu seus dons para o storytelling ao dirigir "Safo", animação que chegou premiada de Annecy e celebra a coragem feminina.
Houve espaço para a Première gravitar pelo que Caetano Veloso chama de "almodrama" e gozar o querer à moda Almodóvar (aquele de "A Lei do Desejo") com "Ruas da Glória", no qual Felipe Sholl esquadrinha a noite do Rio para falar de uma paixão que busca sua completude. A toada epilética dos enquadramentos do fotógrafo Leonardo Bittencourt nos entrega um Rio suado e febril, onde Alejandro Claveaux se renova como ator. "Ato Noturno", produção gaúcha que veio da Berlinale, traça rastros similares.
Foi bonito ver uma documentarista com carteira assinada pelo Real passar pela ficção ao falar da falta de limite nas obsessões pelo estrelato: caso de Susanna Lira em "#SalveRosa", ao lado de Karla Castanho e Karine Telles. Já que o assunto é beleza... vai ser difícil o Festival do Rio se recuperar do plano final (já em meio aos créditos) de "Quase Deserto", o melhor filme de Jim Jarsmuch que Jim Jamursch não dirigiu, pois quem filmou foi José Eduardo Belmonte. Tem eco forte do diretor americano mais "maluco beleza" de todo o cinema nesse novo filme do artista formado no DF que nos deu "Meu Mundo Em Perigo" (2007) e "Gorila" (2012). É metade "Daunbailó" (1986), metade "Estranhos no Paraíso" (1984), só que com Vinícius de Oliveira, o engraxate de "Central do Brasil" (1998), já adulto, a brilhar na tela.
Seu roteiro talvez seja a mais prospectiva abordagem para a rotina de estrangeiros em terras distantes. No caso, um brasileiro (Vinícius, bem à pampa) e um argentino (Daniel Hendler) se arvoram a tentar a sorte numa Detroit que é um oceano de perigos, nos EUA pós-pandemia. Tem uma participação de se aplaudir de pé de Alessandra Negrini, coruscante sobretudo na sequência de uma entrevista de visto. O mais forte de "Quase Deserto" é mostrar o que (ainda) é ser latino no país que reelegeu Trump. No jeitinho brasileiro, a truculência vai se debelando e fica o afeto, o que faz desse Belmonte uma carta de intenções para o futuro, reivindicando (ó o danado do verbo aí) dias melhores. Se esse porvir tiver uma carga de afetuosidade à altura do que os complexos exibidores do Rio (o Estação NET Gávea, o Odeon e o Cinesystem Belas Artes) viveram nesta Première, o amanhã será coisa de cinema.