Thriller sobre o Esquadrão da Morte e seu maior ícone, Mariel Mariscot, encerra o rol de estreias nacionais da maratona carioca sob a grife do diretor de 'Meu Nome Não É Johnny'
Nasce um "Scarface" brasileiro nesta sexta na tela do Odeon, na despedida da seleção de títulos inéditos do Festival do Rio, e ele se chama "O Homem de Ouro". A sessão será 21h45 e vai lotar. Aliás espera-se que o mesmo há de se passar na carreira comercial da fita. Seu diretor, Mauro Lima, tem no currículo um blockbuster que atesta sua investida no thriller: "Meu Nome Não É Johnny", visto por dois milhões de pagantes em 2008. As manhas que adquiriu ali, para fazer biopics de figuras ligadas ao universo da ilegalidade, embasam sua destreza na produção que recria os feitos de Mariel Araújo Mariscöt de Mattos (1940-1981).
Citado com licença poética em sucessos como "Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia" (1977), "República dos Assassinos" e "Eu Matei Lúcio Flávio" (ambos de 1979), Mariel entrou para a posteridade na História do Brasil pelas páginas policiais, na fronteira entre o anti-heroísmo populista do vigilantismo e a corrupção.
É o signo do chamado Esquadrão da Morte, braço legalizado da execução sumário nos tempos da ditadura. Foi salva-vidas, agente da Lei, segurança de boate, contraventor com muita morte no quengo, amante disputado... e mito. Morreu quando estava chegando para uma reunião com chefões do jogo do bicho, debelado por uma submetralhadora automática Ingram M11. Portava duas pistolas - uma calibre 45 e uma 6.35 - que não teve tempo de sacar.
"Em algum momento, houve uma decisão de contar a história como ela se revelou pra mim, ou seja, majoritariamente como material de pesquisa. Então, eu decidi que era importante poder dizer que se trata de uma história real e não de uma 'inspiração' numa história real. Pra isso, eu decidi abrir mão de algumas concessões estéticas e formais que contribuem pra uma narrativa de vocação mais pop, digamos", diz Mauro Lima ao Correio, pontuando que o caminho escolhido poderia ser arriscado para a trama de alguém como Marial.
"Afinal, não existe ali uma trajetória do herói. Até porque não existe um herói, nem mesmo um anti-herói. O que existe é a trajetória de alguém que podia ser herói, mas foi convertido em vilão. Ou, por exemplo, um possível par que não é romântico, mas um desencontro quase trágico. Esse tipo de expediente de roteirista, eu me obriguei a abandonar, já que não seria possível. Em troca disso, deixei o protagonista na centralidade, mas tirei-o da primeira pessoa. É como se tudo fosse contado da perspectiva de um grupo de pessoas de convívio próximo, que tiveram suas vidas fortemente impactadas quando cruzaram seus caminhos com ele. Seja um colega, um desafeto, um familiar, uma amante".
Na menção a "par" quase romântico, Lima se refere ao affair de Mariel com a atriz Darlene Glória, estrela de "Toda Nudez Será Castigada" (1973). Em "O Homem de Ouro", esses papéis cabem a Renato Góes e Luisa Arraes.
"Fizemos um documentário em paralelo, com um material levantado pelo Rodrigo Brandão, que é filho do Mariel com a Darlene Glória. No começo dos anos 2000, ele começou a captar depoimentos de personagens próximos do pai, no passado. O intuito do Rodrigo era, de alguma forma, descobrir quem foi o próprio pai. Por ser filho, ele conseguiu acesso a figuras importantes: família; amigos do tempo de salva-vidas; a mãe; gente da crônica policial; e, sobretudo, colegas do esquadrão. Ele acabou não finalizando e me cedeu o material pra pesquisa", diz Mauro, que exibe "O Homem de Ouro" no Festival do Rio em mais duas sessões: no sábado, às 18h30, no Reserva Cultural, e no domingo, às 21h15, no Cinesystem Belas Artes.
Em 2011, o diretor voltou a falar de gente escorregadia em "Reis e Ratos" (2011), uma joia que nunca foi devidamente valorizada. Flanou por outros veios biográficos, como "Tim Maia" (2014) e "João, o Maestro" (2017), além de ter se arriscado pelo terreno infantojuvenil com "Detetives do Prédio Azul 3: Uma Aventura No Fim Do Mundo", lançado na pandemia. Agora, Mauro conta com o talento de Renato Góes no papel de Mariscot, que participou da Scuderie Le Cocq, um temido grupo de extermínio formado por policiais, criado no Rio em 1965. Em 1969, ele entrou para uma divisão de elite formada por 12 agentes, "os Homens de Ouro", também com o objetivo de executar criminosos. Foi expulso da corporação, passou pela cadeia, escreveu um roteiro sobre seus feitos ("A Fuga da Ilha do Diabo" era um dos títulos que datilografou) e acabou sendo assassinado.
"Nosso 'O Homem de Ouro' dialoga com alguns exemplos de thrillers dos anos 1960 e 1970 (mais do que de 1980), quando o maniqueísmo foi temporariamente abandonado pelos thrillers, assim como certas fórmulas de 'bom protagonismo'. O Mariel que eu descobri foi um produto da época", explica o cineasta. "Tá ali um sujeito que soube capturar o espírito do tempo em favor do seu marketing pessoal e criou o Mariel publicizado".