Documentário de André Weller combina imagens raras e dramatizações para recontar a trajetória do compositor de 'Aquarela do Brasil'
Ary Barroso já era um compositor consagrado em 1939 quando, numa tarde chuvosa em que se viu preso em casa, começou o experimentar acordes ao piano. A melodia e letra sairiam prontas em cerca de dez minutos e o mineiro de Ubá acabava de criar 'Aquarela do Brasil', uma espécie de "Rhapsody in Blue", de George Gershwin (1898-1937), só que (muito) brasileira. Essa é uma das histórias trazidas à tela em "Ary", documentário de André Weller que fez sua estreia mundial em concorrida sessão no último domingo no Festival do Rio.
A genialidade criativa de Ary Barroso (1903-1964), um dos pilares fundamentais da música brasileira, e sua trajetória artística e pessoal é apresentada numa narrativa que mescla imagens de arquivo do músico, compositor e radialista com algumas dramatizações. Conduzido pela voz marcante de Lima Duarte, que empresta sua interpretação para dar vida aos próprios textos e entrevistas de Ary Barroso, o documentário é costurado por canções como "No Rancho Fundo" (parceria com Lamartine Babo), "Na Baixa do Sapateiro" e "Camisa Amarela" e outror marcos de brasilidade, além da própria "Aquarela do Brasil", que levaria Ary à fama em Hollywood e uma indicação ao Oscar graças à trilha sonora que compôs para "Alô, Amigos" (1942), dos Estúdios Disney.
Para muitos, "Aquarela do Brasil" não passa de um samba ufanista que serviu de propaganda à ditadura varguista no Estado Novo. Mas não é bem assim. Sua letra destaca a miscigenação racial como elemento central da identidade brasileira. Versos como "Ô, abre a cortina do passado, tira a mãe preta do cerrado, bota o rei congo no congado" convidam o país a reconhecer e assumir suas raízes africanas. Já o verso "terra de samba e pandeiro" levou o compositor a se explicar aos censores do temido DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), o órgão de censura de Vargas.
A narrativa em primeira pessoa permite ao público acompanhar a jornada de Ary desde os primeiros anos em Minas Gerais até a consagração no Rio de Janeiro, incluindo o período em que ganhou a vida como pianista no Cine Íris e no Teatro Carlos Gomes executando trilhas de acompanhamento para filmes do cinema mudo. Foi a maneira que encontrou para se manter depois que o dinheiro que ganhou da família para se cursar Direito na capital federal se esvaiu.
A pesquisa de arquivo realizada pela produção revela material inédito de valor enorme histórico, incluindo registros do Museu da Imagem e do Som, da Paramount e dos próprios arquivos Disney. Entre as descobertas mais significativas estão imagens dos encontros entre Ary e Walt Disney, além de registros únicos ao lado de Carmen Miranda, documentando momentos cruciais da expansão da música brasileira no cenário internacional. O filme também incorpora registros familiares íntimos, como cenas no sítio em Araras (RJ) e o casamento da filha Mariúza.
As reencenações, protagonizadas por um elenco que inclui Dira Paes, Stepan Nercessian, Leo Jaime e Alan Rocha, revisitam momentos como o famoso programa radiofônico Calouros em Desfile nos quais o compositor revelou talentos como Luiz Gonzaga e Elizeth Cardoso, mas gongou sem piedade - até com humor ácido - os candidatos menos talentos.
Além de descobridor de novos artistas, Ary foi um poderoso formador de opinião tanto no que se relacionava quanto ao próprio futebol - Ary era torcedor fanático do Flamengo e até jogos de futebol chegou a narrar.
Cineasta com trajetória consolidada no documentário musical brasileiro, André Weller traz para "Ary" a experiência acumulada em obras premiadas como "No Tempo de Miltinho" e "Rubem Braga: Olho as Nuvens Vagabundas". A direção de fotografia de Lula Carvalho, profissional renomado por trabalhos em "Bingo: O Rei das Manhãs" e "Tropa de Elite", é um capítulo à parte.
"Ary" volta a ser exibido no Festival do Rio em sessões nesta quinta-feira (9), às 13h45, no Cinesystem Belas Artes 5, e sábado (11), às 16h, no Cine Santa Teresa.