Ao longo de seus 29 anos de carreira, correspondentes a um período histórico de sucessos de bilheteria a granel e duas indicações ao Oscar para sua pátria natal, a argentina Dolores María Fonzi estabeleceu para si um status de estrela que ultrapassou as fronteiras de Buenos Aires e se fundiu a títulos de prestígio global. Há dez anos cravados, o Festival do Rio comoveu-se com sua participação em "Truman", ao lado de Ricardo Darín, Javier Cámara e o cão que dá título ao fenômeno popular do catalão Cesc Gay. Na mesma data, protagonizou o longa ganhador da Semana da Crítica de Cannes em 2015: "Paulina", de Santiago Mitre.
Esteve ainda em "Plata Quemada" (2000), "Esperando o Messias" (também de 2000), "A Aura (2005), "O Crítico" (2013), "A Cordilheira" (2017) e "O Fio Invisível" (2021). Em 2023, estrelou e dirigiu "Blondi", que fez dela uma cineasta, pavimentando uma nova via profissional que, hoje, faz dela a atual representante de sua nação aos olhos da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood para brigar por uma estatueta dourada, com "Belén" - um ímã de lágrimas.
No dia 22, o longa concorreu à Concha de Ouro do Festival de San Sebastián e saiu de lá com o prêmio de Melhor Interpretação coadjuvante, dado ao desempenho de Camila Plaate no dia 27. Também no fim de semana que passou, a produção ganhou a láurea de júri popular no Festival de Biarritz, na França.
O Brasil verá "Belén" pela primeira vez nesta sexta, no Estação NET Gávea, em sessão às 18h30. Há outras projeções no evento: segunda, 06/10, às 21h, no Estação NET Rio 4; quarta, 08/10, às 16h, no Cinesystem Belas Artes 2; e no dia 10/10, às 14h, no Reserva Cultural Niterói 2.
Sua trama se passa em Tucumán, na Argentina de 2014. Naquela data, nas raias da Copa do Mundo, uma jovem (Camila Plaate) é internada em um hospital com fortes dores abdominais, sem saber que está grávida. Ela acorda algemada à maca e cercada por policiais. Ela é acusada de ter provocado um aborto e, após dois anos em prisão preventiva, é condenada a oito anos de prisão por homicídio qualificado devido ao vínculo familiar. Uma advogada, Soledad Deza (vivida com ardor pela própria Dolores) lutará por sua liberdade com o apoio de milhares de mulheres e organizações, que se unirão para mudar o curso da História.
Na entrevista a seguir, concedida ao Correio da Manhã em San Sebastián, Dolores fala do simbolismo do longa em relação à sororidade e à briga para manter a Argentina viva nas telas.
O recorte histórico que você traz ao discutir a descriminalização do aborto se instaura em uma vertente de enorme sucesso do audiovisual, no cinema e nas séries de TV, que é a linha do thriller de tribunal. O quanto dessa tradição de filmes te inspirou?
Dolores Fonzi - Eu fiz um filme de busca pela verdade, que carrega muitas observações pessoais minhas da vida, num empenho de ser inspiracional. Eu não estou trabalhando atrás de heróis. Eu estou buscando exemplos de luta, alguns reais, como o da advogada Soledad Deza, como o de todas as mulheres que se solidarizaram para mudar a realidade das leis argentinas. Eu só tentei ser o mais pessoal possível. Ser pessoal me faz universal.
Evitar maniqueísmos parece ter sido um caminho, mas como se deu, no processo de criação dramatúrgica, a concepção dos personagens centrais?
Existia uma preocupação essencial de não apontar o dedo para os homens e acusa-los de maus, pois o que há de corrupto em cena é o sistema. Vivemos num país em que as instituições abusam do poder que têm e nos deixam na mão da Justiça, sem ação.
Como traduzir essa opressão imageticamente?
Nas sequências da prisão, por exemplo, a câmera estática, a fim de sugerir uma claustrofobia inerente a um mundo estático. No tribunal, a busca da dramaturgia era inspirar. Eu não acho que seja necessário ser feminista para embarcar na causa defendida no caso 'Belén' e você pode ter adesão das plateias masculinas ao que eu conto.
Durante a coletiva de imprensa de "Belén" em San Sebastián, você disse que a produção de cinema na Argentina foi reduzida de cem filmes a um. O que mudou na prática?
É um milagre que o Festival de San Sebastián tenha conseguido ter três longas argentinos em sua competição oficial (além de "Belén", concorriam "27 Noites" e "Las Corrientes"), pois não há dinheiro para nada, uma vez que o governo cortou os apoios todos. Filmar na Argentina hoje é impossível.
Você roda festivais agora com um filme que foi subsidiado por uma plataforma, numa iniciativa do Amazon Studios, mas carrega um símbolo cinéfilo mítico da tela grande: o Leão da Metro. O que o felino da MGM representa?
Quando eu vi o Leão da Metro no filme, mandei-o para minha família e meus amigos, pois eu vejo filmes com esse signo desde criança. Não fazia ideia dessa conexão entre a Amazon e a MGM quando o projeto começou, mas eles financiaram a produção na Argentina. Sem as plataformas, não conseguiríamos.