Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Werner Herzog, um complexo alemão

Werner Herzog: 'Faço cinema desde o tempo em que só festivais absorviam práticas como essa. Hoje, há mais diversidade, mas o risco ainda instiga' | Foto: Divulgação

 

Prestes a finalizar uma ficção rodada na Irlanda com as irmãs Kate e Rooney Mara, chamada "O Vale Imaginário", o cineasta alemão Werner Herzog receberá no fim desta tarde um prêmio honorário na cerimônia que dará a largada para o 82º Festival de Veneza, na Itália, celebrando sua carreira, sua coragem... sua loucura. A alcunha de "louco" lhe foi atribuída ao longo das peripécias quase suicidas para filmar títulos como "Fitzcarraldo" em solo amazônico (com José Lewgoy e Grande Otelo), que lhe rendeu a láurea de Melhor Direção em Cannes, em 1982.

Em parte, a fama veio também por seu fascínio por personagens que vão além dos desígnios da lucidez, como "O Homem-Urso", que repaginou a carreira do diretor, há 20 anos, ao tratar de um ativista florestal devorado vivo pelas criaturas que protegia. É Francis Ford Coppola, diretor de "O Poderoso Chefão" (1972), quem entregará a honraria ao amigo germânico, nascido em Munique, há 82 anos. No Lido (o espaço onde o evento acontece na terra das gôndolas), Herzog estreará seu novo documentário, "Ghost Elephants", sobre a busca por uma manada em uma região praticamente desabitada das terras altas de Angola, que é tão grande quanto a Inglaterra. A projeção será fora de competição - que começa nesta quarta, com "La Grazia", de Paolo Sorrentino - seguida de uma masterclass.

"Existe a ordem racional e existe a natureza. O cinema é algo que interponho entre esses dois extremos", disse Herzog ao Correio da Manhã em Cannes, em 2019, numa palestra ao lado da atriz Julianne Moore e do diretor e ator Xavier Dolan. "Existe um mundo lá fora, sem regras da moral, distante dos dispositivos do processo artístico, onde as pessoas vivem em ambientes muito diferentes do que qualquer contingência da razão possa definir. Eu saio a campo, com a câmera na mão, em busca dessas práticas de viver, a fim de conhecê-las, mas não de dominá-las. Faço cinema desde o tempo em que só festivais absorviam práticas como essa. Hoje, há mais diversidade, mas o risco ainda instiga".

Quando o prêmio veneziano foi anunciado, o diretor artístico do festival, o curador Alberto Barbera, declarou: "Cineasta físico e caminhante incansável, Werner Herzog atravessa constantemente o planeta Terra em busca de imagens até então inéditas, testando nossa capacidade de olhar, desafiando-nos a compreender o que está além da aparência da realidade e sondando os limites da representação cinematográfica em uma busca incansável por uma verdade mais elevada e extática e por novas experiências sensoriais. Estabelecendo-se como um dos principais inovadores do Novo Cinema Alemão com filmes como 'Sinais de Vida'; 'Nosferatu, O Vampiro da Noite; 'Aguirre, a Cólera dos Deuses'; e 'Vicío Frenético', ele nunca deixou de testar os limites da linguagem cinematográfica, contrariando a distinção tradicional entre documentário e ficção e, ao mesmo tempo, propondo uma investigação radical dos temas da comunicação, da relação entre imagens e música e da beleza infinita da natureza e sua inevitável corrupção.

A carreira de Herzog é fascinante e arriscada, pois envolve comprometimento total e exposição pessoal a riscos físicos, onde a catástrofe está sempre à espreita. Brilhante narrador de histórias incomuns, Herzog é também o último herdeiro da grande tradição do romantismo alemão, um humanista visionário e um explorador incansável".

O discurso de Barbera se assemelha ao que Herzog ouviu de Cannes, em 2017, ao receber o troféu honorário Carroça de Ouro, na mostra Quinzena de Cineastas, por sua filmografia, que abordou o Brasil ainda em "Cobra Verde", de 1987. Ruy Guerra, diretor moçambicano radicado no Rio, foi seu parceiro de trabalho mais de uma vez.

Macaque in the trees
'Ghost Elephants', obra mais recente do realzador alemão, será exibido fora de concurso no Lido | Foto: Fotos: Divulgação

Há tempos, Los Angeles virou a base de operações de Herzog, onde ele leciona, escreve livros e dirige majoritariamente documentários, como "Encontros no Fim do Mundo" (2007), sobre a Antártica, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Suas expedições planeta adentro são festejadas pela crítica. Sua geografia de risco foi objeto de uma exposição, realizada em 2023 na Deutsche Kinemathek, a cinemateca da Alemanha, em Berlim. Tratava-se de uma coleção de desenhos, objetos e, sobretudo, fotos que mapeiam toda a trajetória dele pelas telas, com destaque para sua passagem por Manaus, nas filmagens do já citado "Fitzcarraldo". Retratos de Claudia Cardinale e de seu ator assinatura, Klaus Kinski (1926-1991) estampam as paredes do chamado Museu do Filme berlinense. Tem até um rato empalhado (ou talvez seja um boneco, pos ninguém da curadoria confirmou o que era) que acompanhou Kinski em suas noites como vampiro na versão que Herzog fez de "Nosferatu", de Murnau, à sua maneira autoralíssima, em 1979. Complexo, para o alemão, é o mistério da mente humana.

"Eu já consegui extrair de atores como Nicolas Cage atuações bem-humoradas que te fazem sentir diante de uma comédia com Eddie Murphy, aquelas boas, hilárias, dos anos 1980, mas já consegui fazer com que pessoas sem qualquer experiência teatral se abrissem para a atuação, só focando no que a condição humana tem de mais simples, de mais corriqueiro", explicou Herzog ao Correio da Manhã em Cannes, há quatro anos, ao lançar "Uma História de Família", uma de suas raras ficções nas últimas duas décadas. "É preciso saber observar a Natureza. Os espetáculos todos brotam da Natureza".