Sobra pouco espaço para informações minuciosas no cinema praticado pela francesa Claire Denis, uma vez que sensações a interessam mais do que fatos. A covid-19, sim, é um fato, e de cunho histórico, que ela ressalta em "Com Amor e Fúria" ("Avec Amour et Acharnement"), pelo qual conquistou o Urso de Prata da Melhor Direção na Berlinale, em 2022. A recente inclusão de seu nome na lista de concorrentes à Concha de Ouro no Festival de San Sebastián de 2025 (que vai de 19 a 27 de setembro, em outubro), com "Le Cri des Gardes", ampliou a visibilidade de sua obra pregressa. A Prime Vídeo da Amazon e a plataforma Filmelier são suas aliadas no resgate de seu legado.
Em "Com Amor e Fúria", que está nesses streamings, há pessoas de máscaras nas ruas. Por onde excursionou, o longa-metragem - visto por 157 mil pagantes em sua França natal - abriu um debate sobre os efeitos sociais do coronavírus, em especial o isolamento, a falta de contato na interação presencial. Não por acaso, o enredo elaborado pela realizadora - respeitada por cults como "Bom Trabalho" (1999) e "Vendredi Soir" (2002) - fala de um triângulo amoroso, envolvendo escolhas e renúncias. A fala é potencializada por dois de seus parceiros mais potentes: Juliette Binoche e Vincent Lindon.
Hoje com 79 anos, Claire estava nos Estados Unidos em março de 2020, quando a pandemia estourou, forçando a diretora a voar para Paris às pressas e se isolar. Passou um tempo só cozinhando, lendo e tentando entender o que se passava no mundo quando resolveu escrever um filme, numa troca com escritora Christine Angot. A trama: a radialista Sara e o empresário Jean (vividos por Juliette Binoche e Vincent Lindon, ambos em erupção) estão num ponto de puro e fino idílio em seu casamento quando o ex-marido dela, François, vivido por Grégoire Colin, reaparece, desatando os nós de um querer que parecia muito bem amarrado.
Partindo dessa premissa e de seu prévio interesse por fragmentos do discurso amoroso (já espatifados em seu delicadíssimo "Deixe a Luz Do Sol Entrar"), a realizadora de "Nenette e Boni" (Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, em 1996) faz uma ode às cartilhas palavrosas do cinema francês moderno. Ela o faz antenada com a pós-modernidade, inclusive com o trauma de uma doença virótica que nos tira o fôlego. A falta de ar funciona como metáfora ultrarromântica.
Eric Gautier, um dos maiores diretores de fotografia do cinema europeu, foi o escudeiro de Claire numa operação nas imediações do Canal Saint-Martin e nos estúdios da rádio RFI. O foco de Claire era não apenas a triangulação entre Sara, Jean e François, mas o universo de imigrantes africanos numa Paris de contradições sociais diversas, afinal, existe o amor e existe a vida. Os dois se aliam às vezes. Noutras, hostilizam-se ou se antipatizam. É desse enguiço, do verbo "viver" com o verbo "amar", que ela fala, embalada na belíssima trilha sonora do grupo Tindersticks (incluindo a canção "Both Sides of the Blade") e apoiada numa fotografia atenta aos vetores da natureza em torno do casal central e seu invasor. O produto dessa experiência de Claire é um lirismo avassalador.
Em seu esperado "Le Cri des Gardes", a diretora faz uma adaptação de um romance de Bernard-Marie Koltès: "Combat De Nègre Et De Chiens". O filme se passa nos barracões de uma obra na África Ocidental e é protagonizado por Isaach de Bankolé, Matt Dillon, Mia McKenna-Bruce e Tom Blyth. Num canteiro de operários, Horn, o chefe da obra (vivido por Dillon), e Cal, um jovem engenheiro (Blyth), dividem o alojamento atrás da porta dupla das instalações. Leone, a nova esposa de Horn (Mia), chega para se juntar a eles na noite em que um homem (interpretado por Isaach) aparece junto à cerca. Seu nome é Alboury. Como um espectro na escuridão, ele exige o corpo de seu irmão, que morreu naquele mesmo dia na obra. Ele vai assombrar os dois homens durante toda a noite até que lhe entreguem o cadáver, enquanto Leone observa o desastre crescer diante de seus olhos. É uma promessa de vitórias em San Sebastián, onde foi jurada em 2023 e onde ganhou o Prêmio da Crítica, em 2018, com "High Life".