Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Em ‘Rua do Pescador nº 6’, Bárbara Paz abraça um cinema de prospecção, de fé, de resistência

'Rua do Pescador Nº 6', de Bárbara Paz, desponta como favorito em premiação específica para produções do Rio Grande do Sul | Foto: Divulgação

Contingenciou-se que o conceito de “filme catástrofe”, aplicável a títulos de sucesso comercial como “Inferno na Torre” (1974) e o recente “Twisters” (2024), é um privilégio pop da ficção, uma vez que a reprodução de desastres ambientais exige uma estrutura de efeitos especiais e visuais que só os orçamentos de aventuras live action costumam ter. Eis que Bárbara Paz surge com “Rua do Pescador nº 6”, exibido em abril no É Tudo Verdade, premiado no início do Mês no Bonito Cine Sur e transformado em longa-sensação no Festival de Gramado, que termina neste sábado (23).

Seu documentário, joia da mostra gaúcha, é a prova de que a não ficção pode trazer riqueza a esse registro, tão associada à noção de espetáculo (como se viu em “Terremoto” ou “Inferno de Dante”). O empenho de Bárbara é para “desespetacularizar” o trágico.

A atriz já esteve pelo evento serrano antes e brilhou como intérprete nos delicados “A Porta ao Lado”, de 2022, e “Por Que Você Não Chora?” (seu melhor desempenho na telona), visto em 2020. Seu regresso agora é como realizadora, de novo nas franjas do documentário, pelas quais sagrou-se premiada, em Veneza, com “Babenco: Alguém Tem Quer Ouvir O Coração E Dizer Parou”, seis anos atrás. Voltou lá como cineasta, em 2021, com “Ato”, haicai sobre isolamento. Ambos os filmes eram poemas, um de saudade, outro de sufoco. Os dois temas se abraçam e se mesclam em sua fita mais recente, que Gramado aclamou.

Daniela Mazzilli, sua produtora executiva, esgrimou qual Scaramouche as dificuldades impostas a ela por Bárbara no ensejo de registrar as enchentes do Rio Grande do Sul em 2024. O plano da direatriz gaúcha era fazer um calidoscópio memorial de um desastre que afogou seu estado. Precisava de depoimentos para isso, in loco, e os teve. Muitas bocas falam, muito olho chora. Estatísticas estão lá. Sensos meteorológicos, também. O foco, contudo, era (e é... e será) gente, as vítimas, ou melhor, os heróis. Há uma Liga da Justiça em cena. Mulheres e homens de várias idades que exerceram o heroísmo de resistir, de sobreviver. Há até um Krypto em cena, um cão tão destemido quanto o totó de Kal-El, que protagoniza uma sequência vertiginosa, do alto de um telhado, sob a ameaça das águas. Parece subtrama de “O Dia Depois de Amanhã” (2004), sucesso climático de bilheteria de Roland Emmerich, mas é vida.

Emmerich é o artesão mais prolífico do filão catástrofe no cinema atual, em Hollywood, mas o Brasil já deu suas andanças por esse registro de gênero, via documentário, no passado, com “Enchente” (2011), de Julio Pecly e Paulo Silva. Revelado pela Mostra de Tiradentes há 14 anos, esse assombroso ensaio sobre resiliência partia de “guardados” em VHS sobre uma inundação na Cidade de Deus, em 1996. Era uma narrativa enervante de se quicar nas poltronas mineiras. Quicou-se muito na Serra Gaúcha com “Rua do Pescador nº 6”, cujo título evoca o endereço de uma comunidade ribeirinha afetada pelas torrentes. Com a baixa das águas, emergiram dali memórias de vidas marcadas pela tragédia. Bárbara trança essas recordações como se fossem uma colcha de retalhos. É uma colcha na qual cada pedacinho cerzido exorciza uma dor, um assombro. Ter um titã da montagem como Renato Vallone na edição foi uma sacada preciosa para que essa dimensão terapêutica dos desabafos se tornasse possível. A cineasta já ia por esse caminho no longa sobre seu finado companheiro, Babenco. Mostra-se, portanto, uma autora, das mais humanistas.

Gramado viu grandes montagens no festival deste ano, a se destacar a do cuiabano Bruno Bini no thriller “Cinco Tipos De Medo”, favorito da disputa de longas de ficção. Igual ao trabalho de Vallone, contudo, não há nenhuma edição neste festival. A escolha de um garotinho de dentes de leite a sorrir esperança na reta de chegada da fita é a certeza de que Bárbara abraça um cinema de prospecção, de fé, de resistência.