Ao incluir "Dolores", de Maria Clara Escobar e Marcelo Gomes, na competição oficial da mostra Horizontes Latinos, o Festival de San Sebastián - agendado de 19 a 27 de setembro no norte da Espanha - presta tributo póstumo a um cineasta que deixou uma obra de alto quilate afetivo: Chico Teixeira (1958-2019). Há uma década, em Gramado, o diretor conquistou o troféu Kikito de Melhor Filme e o de Melhor Direção com "Ausência", num momento em que passava por uma quimioterapia, em luta pela vida. A produção ganha novos holofotes agora, com a ajuda do streaming, presente na plataforma digital Reserva Imovision, que pode ser acessada ainda via Prime Vídeo, da Amazon.
Gramado ajudou a reverberar o olhar delicado dele para a resiliência feminina, que alimenta "Dolores", produzido por Sara Silveira, Eliane Bandeira e Maria Ionescu, com distribuição da California Filmes. O filme foi contemplado com o apoio do programa de Internacionalização Brasil No Mundo, do Projeto Paradiso e com o apoio da Spcine. O projeto foi idealizado por Chico para integrar sua Trilogia dos Afetos, formada por "A Casa de Alice" (2007) e "Ausência".
Na trama, Dolores, interpretada por Carla Ribas, acaba de completar 65 anos e teve um sonho premonitório: abrir um cassino. O problema é que ela já foi viciada em jogos e tem uma relação tensa com sua única filha, Deborah (Naruna Costa), mas é próxima da neta, Duda (Ariane Aparecida), que trabalha numa loja de armas e sonha em se mudar para os EUA.
A pedido do Correio da Manhã, Maria Clara Escobar e Marcelo Gomes explicam, num depoimento conjunto, que: "o cinema do Chico fala muito de pessoas e de suas relações diante das condições que a vida apresenta. De alguma forma, o nosso cinema também é sobre isso. Buscamos construir e investigar a vida de pessoas e personagens, cada um à sua forma. Chico nos deixou essas três mulheres que vivem em mundos singulares, sobre as quais ele começou a sonhar e para nós foi um presente seguir sonhando".
A dupla vai conduzir o legado do finado artista para um San Sebastián que promete agitar o planisfério cinéfilo, com filmes novos de Claire Denis ("Le Cri Des Gardes"), Agnieszka Holland ("Franz"), Arnaud Desplechin ("Deux Pianos"), Dolores Fonzi ("Belén), Alice Winoucour ("Couture") e Edward Berger ("Ballad of a Small Palyer") na disputa pela Concha de Ouro. Entre as produções concorrentes de "Dolores" nos Horizontes Latinos se encontra a titã argentina Lucrecia Martel, com o documentário "Nuestra Tierra".
A presença de "Dolores" num dos sete maiores festivais do mundo (ao lado de Roterdã, Berlim, Cannes, Locarno, Veneza e Toronto) desperta uma redescoberta do ensaio sobre fraturas afetivas do amadurecimento expresso em "Ausência". Essa coprodução Brasil/Chile, orçada em cerca de R$ 4 milhões, conquistou ainda os Kikitos de Melhor Roteiro (escrito por Cesar Turim, Sabina Anzuategui e Teixeira) e Trilha Sonora (composta por Kassin). Exibido em uma dezena de festivais pelo mundo afora, incluindo o de Berlim e o de Toulouse (na França), onde ganhou o prêmio Cine em Construcción, o longa de despedida que consagrou Chico Texeira em Gramado segue os passos de um adolescente, Serginho (Matheus Fagundes, numa atuação irretocável), para domar o ardor do amadurecimento enquanto lida com o abandono do pai e as bebedeiras da mãe, vivida pela diva do cinema independente Gilda Nomacce. Irandhir Santos está em cena como o professor Ney, um explicador que vai travar uma relação tensionada com o garoto, conforme ele põe a carência na frente de seus atos, resvalando num arranjo de sugestão queer.
Em 2014, "Ausência" rendeu a Fagundes o troféu Redentor de Melhor Interpretação no Festival do Rio, onde o longa recebeu ainda o Prêmio Especial do Júri. Em 2015, Chico Teixeira preencheu com doçura as necessidades de Gramado por filmes sobre essências individuais tratadas com simplicidade e carisma. A força visual da fotografia de cores esmaecidas de Ivo Lopes Araújo amplifica a potência desse retrato de uma alma jovem em busca de afagos e pertencimento.
A 53ª edição de Gramado termina neste sábado (23).