Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Como é gostoso (re)ver Nelson Pereira dos Santos

Nelson Pereira dos Santos no set de filmagens de 'Como Era Gostoso o Meu Francês' | Foto: Divulgação

Lá se vão 50 anos cravados desde que Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) ganhou o Kikito - um apenas, em toda a sua gloriosa carreira - com "O Amuleto de Ogum", hoje distante dos streamings nacionais. Encontram-se pérolas dele na Netflix ("Rio, 40 Graus", "A Luz do Tom"), na Globoplay ("Vidas Secas", "Memórias do Cárcere") e na Prime Video ("Rio Zona Norte"). Há, contudo, um movimento de redescoberta (e de revalorização) de um de seus cults, "Como Era Gostoso O Meu Francês" (1971), que, esta semana, ganhou uma aliada (e tanto!) no exterior: a revista "IndieWire".

Ao fazer uma enquete, com representantes da crítica internacional, acerca dos cem melhores filmes feitos na década de 1970, no mundo todo, a publicação escalou essa sátira de NPS sobre o jugo colonial. Ela acabou sendo a única representante do Brasil. O topo do pódio, em primeirão, ficou com "All That Jazz - O Show Tem Que Continuar" (1979), que deu a Palma de Ouro a Bob Fosse (1927-1987). O longa de Nelson ficou em 47º lugar.

"Do título até o final, 'Como Era Gostoso O Meu Francês' está inflexivelmente — e alegremente — enraizado na perspectiva dos Tupinambás, cuja compreensão do mundo não foi contaminada pela hegemonia dos invasores europeus", escreveu o crítico David Ehrlich, um dos votantes, em www.indiewire.com/lists/best-70s-movies. "Esse ponto de vista 'ahistórico' acabará por levar ao seu extermínio, mas não antes de Pereira dos Santos conseguir reverter os preconceitos consagrados pelo tempo do cinema ocidental e criar uma história que se identifica com os conquistados a todo custo. Ao fazê-lo, ele oferece uma lembrança mordaz e sarcástica de que a história é mais fácil de engolir do que de digerir".

Livremente baseado nas vivências de Hans Staden (que era alemão e sobreviveu para contar sua história), "Como Era Gostoso O Meu Francês" rendeu a Nelson uma indicação ao Urso de Ouro da Berlinale. Sua narrativa nos leva ao Brasil de 1594, onde um aventureiro francês com conhecimentos de artilharia (papel de Arduíno Colassanti) é feito prisioneiro dos Tupinambás. Segundo supostos ritos indígenas de então, era preciso devorar o inimigo para adquirir os seus poderes: saber utilizar a pólvora e os canhões. Enquanto essa hipótese gastronômica não vira realidade, o europeu vive um romance com uma jovem, Seboipepe (Ana Maria Magalhães).

Macaque in the trees
Antes de ser comido pelos tupinambás, o militar francês vivido por Arduíno Colasanti vive um romance com a jovem Seboipepe (Ana Maria Magalhães) | Foto: Divulgação

"O 'Francês' é um filme transgressor, né? E é um filme que fala do colonialismo de uma outra forma. Nós filmamos em plena ditadura, completamente nus, pelados. Ele é subversivo em todos os sentidos, tanto na ideia - no conceito, no conteúdo -, quanto na forma", diz Ana Maria ao Correio. "No plano em que eu como o francês, o Nelson me deu um chocolate. A cara que eu estou fazendo é porque estou comendo um belo dum chocolate".

Assistente de direção de Nelson no set, Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, explica que "Como Era Gostoso...", num certo sentido, era uma adesão à cultura antropofágica, como ensinou o manifesto modernista de 1922. "Eles 'deglutiram' a Arte Moderna europeia e inauguraram uma expressão brasileira. No nosso caso, o 'estrangeiro' era representado pelos povos originários", explica Bigode. "Com sua tranquilidade e prazer de filmar, Nelson nos indicava livros, além do de Hans Staden, sua principal fonte de inspiração, entre os quais, o dicionário de tupi-guarani escrito pelo (mítico cineasta) Humberto Mauro, que assinou a versão dessa língua no roteiro do filme. Nosso diretor de fotografia, Dib Lutfi, passou a usar expressões em tupi-guarani que significavam 'Ação, Corta!' no set".

Filho de Nelson, o ator e produtor Ney Santanna explica que longa foi um sucesso de bilheteria.

"Ele fez mais de um milhão de espectadores. Chegou a ser proibido, mas, depois, foi liberado, com cortes, recomendado para a colônia de férias do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, o que é muito louco", conta Ney, que estrelou "O Amuleto de Ogum", que brigou pela Palma de Ouro de Cannes.

"Meu pai foi convidado para ir ao Japão, no ano 2000, e 'Como Era Gostoso O Meu Francês' era um dos filmes a serem exibidos. Só que a censura japonesa é feita na alfândega, e, já por lá, eles nos proibiram, porque naquele país é proibido nu frontal masculino. Foi um reboliço! Teve uma conferência de imprensa na embaixada para resolver o caso. Meu pai contou que recorreu ao chefe de polícia - um oficial casado com uma historiadora. Alguns censores, para reforçar, chamaram outras pessoas para assistir ao filme também nessa conferência. Chamaram até o convento de Carmelitas, em que a madre superiora foi. Nessa sessão, passou o filme e, quando terminou, a mulher do oficial falou que (a proibição) era um absurdo: 'Um filme histórico... como é que proibiriam esse filme? Não tem problema ter nudez". E aí o oficial perguntou para a madre superiora se ela havia visto algum pecado no filme, e ela afirmou ter visto cobiça: 'Um homem querendo matar o outro por dinheiro, por tesouro'. Aí o filme foi liberado".

Em 1998, Nelson esteve em Gramado para receber o prêmio honorário Oscarito, pelo conjunto de seus préstimos ao nosso audiovisual, entre eles fazer de "Como Era Gostoso..." um farol do nosso cinema para o planisfério cinéfilo.