Exercício humorístico incomum para o padrão brasileiro de graça, por apostar no tragicômico, "Sonhar Com Leões", de Paolo Marinou-Blanco, fez o 53º Festival de Gramado rir, em catarse, com diálogos nas raias do expositivo sobre formas de suicídio. Não há desrespeito à angústia alheia em sua abordagem. Há um flagrante do quão patético é o desamparo nas raias da finitude anunciada, com o Estado a se impor... e a lucrar com a dor dos outros.
A personagem principal, Gilda, que Denise Fraga interpreta com esplendor, numa frenética atuação, tem uma doença terminal que operação nenhuma cura. Esse mal pode lhe tirar o movimento das pernas e dos braços. Num exercício de "quebra da quarta parede" (procedimento no qual se fala para a câmera, endereçando a conversa direta e frontalmente à plateia, deslindando todo o caráter ilusório da representação), Gilda faz troça de seu próprio infortúnio, desabafa sobre a aspereza da condição humana sob o risco da perda e compartilha detalhes de suas três tentativas de se matar, todas fracassadas.
A gente ri, com ela, do que de deveria ser lamentado, para que, naquele riso, o realizador de "Sonhar Com Leões" (um dos seis longas de ficção em competição na maratona gaúcha deste ano) possa exorcizar espectros moralizantes que cercam a sociedade ocidental no que diz respeito à partida. Sem cura, Gilda quer eutanásia, mas realiza-la é, na maior parte do planeta, um crime. A permanência dessa criminalização vem inspirando uma onda de filmes - de prestígio aos olhos da crítica e até de êxito popular, gestados na esteira da morte do semiólogo maior da telona: Jean Luc-Godard (1930-2022).
Há três anos, o realizador de "Acossado" (1960) e "La Chinoise" (1967), considerando-se sem forças para lidar com o excesso de informações do mundo, optou por "cantar para subir", em sua casa na Suíça, onde o suicídio assistido é permitido. Depois que ele se foi, surgiu uma leva de títulos sobre despedida, na ótica das formas de antecipá-la e nos meios para torna-la menos indigna. O estandarte dessa linhagem é "O Quarto Ao Lado" ("The Room Next Door"), que deu o Leão de Ouro do Festival de Veneza ao espanhol Pedro Almodóvar, em 2024. Tilda Swinton é uma jornalista que, ciente da ineficácia de sua quimioterapia, resolve se isolar no interior a fim de usar uma pílula que lhe assegure o descanso definitivo. Para isso, uma amiga do passado, a escritora interpretada por Julianne Moore, será seu amparo. Poderia ser uma tragédia, como é um filme do realizador de "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999) e "Fale Com Ela" (2002), vira um melodrama, ou melhor, um "almodrama", mas não sobre morrer e, sim, sobre parcerias.
"Fiz um filme sobre uma mulher que agoniza num mundo que agoniza. Se o indivíduo é dono de sua vida deve também ser o dono da morte", disse Almodóvar, no Festival de San Sebastián.
Lá, a eutanásia e a cultura da Medicina Paliativa voltaram à tona em muitos títulos, entre eles "Os Vislumbres" ("Los Destellos"), de Pilar Palomero, no qual uma mulher precisa ajudar seu ex-marido a se despedir deste plano carnaval com menos solidão do que o vazio ao seu redor. O evento basco pôs em concurso uma pequena joia que se debruça sobre a cultura do health care (o tratamento clínico e afetivo de pacientes desenganados) e que hoje, em cartaz no Rio de Janeiro, tornou-se um êxito de bilheteria: "Uma Bela Vida" ("Le Dernier Souffle"), de Costa-Gavras. O papa do thriller político, coroado com Oscars e prêmios e Cannes por fenômenos dialéticos como "Missing" (1982) e "Z" (1969), está com 92 anos. Admitiu que chegar aos 90 inspirou-lhe uma reflexão sobre a durabilidade dos corpos num momento em que a população mundial está cada vez mais envelhecida. "Na minha idade, o horizonte do fim se aproxima mais e mais e estou interessado na melhor forma de morrer. Quero estar preparado para morrer dignamente", disse o realizador ao Correio da Manhã.
Um livro escrito pelo médico Claude Grange e pelo jornalista e filósofo Régis Debray, chamado "Le Dernier Souffle: Accompagner La Fin De Vie" (ed. Gallimard), é a base do roteiro, escrito por Costa-Gavras com uma acurada atenção a diálogos coloquiais e a falas poéticas. "O Diabo mora nos detalhes" é a frase mais recorrente na tela. Ela pontua um paralelo entre a agonia dos organismos (ora idosos, ora jovens) com a atual situação social do Velho Mundo, em relação a ações assistenciais. Em cena, o doutor Augustin Masset (Kad Merad) e o renomado escritor Fabrice Toussaint (Denis Podalydès) discutem métodos de dar assistência a pessoas que estão prestes a morrer. Cada paciente tem o seu drama pessoal narrado.
Falou-se disso outrora, em ganhadores do Oscar como "As Invasões Bárbaras" (2003), de Denys Arcand, e "Mar Adentro" (2004), de Alejandro Amenábar. É uma prova do quanto a curadoria de nosso festival mais popular está em sintonia com as urgências do mundo.