Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Anima, Gramado!

Vindo de Porto Alegre, 'Mãe da Manhã' foi premiado no exterior e agora representa seu estado na disputa dedicada ao cinema gaúcho | Foto: Divulgação

Apoiado em ancestralidades, africanas e indígenas, para celebrar a cosmogonia, "Jeguatá Xirê", uma produção de apenas sete minutos, dirigida por Alan Alves-Brito, Ana Moura e Marcelo Freire, reconectou Gramado com uma das fortes tradições do Rio Grande do Sul das telas: a animação. Desde os anos 1980, o festival celebra a prata da casa, a se destacar os talentos da Casa de Cinema de Porto Alegre, a maior produtora do estado. Nessa valorização do que o cinema gaúcho faz de melhor, em múltiplos pontos do estado, as narrativas animadas têm lugar nobre. É o que justifica a presença de "Mãe da Manhã", de Clara Trevisan, na competição gramadense dedicada a títulos da região. Esse poema feral, de oito minutos e nove segundos, foi premiado na Europa e, agora, busca reconhecimento em seu berço.

Laureado com uma distinção honrosa no Athens Animfest, "Mãe da Manhã" busca na Natureza sua forma de produzir existencialismo, com uma direção de arte exuberante. Sua trama se passa no breu da noite. Nela, uma criatura faminta busca alimento e perpetua um ciclo.

 

Macaque in the trees
Cena de 'Ai que Preguiça, Show' em que Macunaíma entrevista Mário de Andrade, sob a ironia de Otto Guerra | Foto: Divulgação

Igualmente sintonizado com as forças naturais, "Jeguatá Xirê", que abriu a competição oficial de curtas deste ano, na segunda, encara o Céu como um arquivo de narrativas. Em cada estrela ou sombra ressoam relatos que guiam sonhos e lutas. O roteiro segue o rastro de uma serpente cósmica que dissolve fronteiras e traça novos caminhos. Entre os cantos ancestrais, corpos e pensamentos brilham como constelações, numa fricção entre a física e a fabulação.

Cada um desses títulos renova uma estrada do Sul que tem como estandarte nº 1 Otto Guerra, o único animador do país que ganhou o troféu Eduardo Abelin, a honraria oferecida por Gramado, desde 2001, a cineastas autorais e a produtores que fomentam descobertas estéticas. A partir de 1984, com "O Natal do Burrinho", sua obra é referência nacional (e internacional) de desenho animado, com destaque para o cult "Wood & Stock - Sexo, Orégano e Rock'n'roll" (2006).

"O RS, assim como o Brasil, vive um momento que eu acreditava nunca ver ainda em vida: tá larga e tá conceituada a animação brasileira. Aqui, além de empresas de produção de séries e jogos, a gente está finalizando dois longas e iniciando mais dois, além de desenvolver projetos de séries e curtas", diz Otto ao Correio.

Macaque in the trees
Ancestralidades plurais regem 'Jeguatá Xirê', que abriu a disputa de curtas de Gramado 2025 | Foto: Fotos: Divulgação

Consagrado nos curtas com "Novela" (1992) e "Cavaleiro Jorge" (2000), ele finaliza agora "O Filho da Puta", cujo título já traduz sua irreverência. "Vai ser um upgrade na Otto Desenhos (a empresa do cineasta), e também estamos lançando, no início de 2026, 'Joe e o Vale Vazio', o primeiro longa infantil produzido aqui", antecipa o cineasta.

A pleno vapor em sua produtividade, a Otto Desenhos está iniciando ainda "Matrioskas", que também será longa, e um filme chamado "Ai que Preguiça, Show", com ecos de "Macunaíma", um marco de nossa literatura. A seleção de Gramado de 2026 já está no radar do veterano mestre dos dispositivos de animar.

"O festival foi fundamental para a nossa produtora, uma mola propulsora dos filmes de ficção e um veio de integração com o mundo da sétima arte em geral. Gramado é uma vitrine que viabilizou nossa existência", explica Otto, lembrando uma situação inusitada que viveu no evento. "Nosso filme 'The End', exibido lá, tinha só três minutos de duração, mas a cópia arrebentou na projeção com a sala cheia e acabou consumindo mais de 15 minutos".

Noutra latitude, o documentário, Gramado confere, nesta quinta, na seção de títulos gaúchos, uma pérola na linha dos filmes-catástrofe: o longa "Rua do Pescador n°6", de Bárbara Paz. A atriz e diretora, apoiada numa montagem frenética, revive o desastre climático em Porto Alegre, em 2024. A sequência da luta de um cachorro para não ser engolido pelas águas é de roer unhas até o sabugo.

Faltam dois dias para Gramado acabar e, até o momento, entre os concorrentes que mais impactaram o evento, impõe-se para a posteridade o curta paranaense "Quando Eu For Grande", realizado por Mano Cappu, de Curitiba. Sua geometria de acertos (e de afetos) é das mais multifacetadas. O enredo segue o menino Gabriel, de seis anos, e sua mãe, Vera, que retornam para casa, carregados de dúvidas e incertezas sobre o futuro, de uma visita.

Na seara dos longas, nada foi mais analgésico em Gramado, até agora, do que "Querido Mundo", poema em P&B de Miguel Falabella, no qual dois perdedores em derrocada anunciada provam o doce gostinho da ascese amorosa numa noite de réveillon em escombros de um edifício. No sábado (23) o júri demonstra como recebeu essas duas maravilhas.