Terceiro longa-metragem pilotado pelo ator e autor teatral Miguel Falabella em uma estrada como diretor de cinema iniciada 2008, “Querido Mundo” chegou a Gramado como porta-voz das artes cênicas, visto que se apoia numa peça - e de sucesso. Passou na noite desta segunda-feira e, em questão de minutos, tirou o festival gaucho da zona de (des)confroto padrão das narrativas sociológicos, ao apostar no lúdico. O visual em P&B (resplandescente) da fotografia de Gustavo Hadba (artesão da luz) foi o primeiro indício de que um exercício nas franjas do fabular pediria passagem a um evento sintonizado com o real desde que a disputa pelo Kikito começou, no sábado. A fabulação de Falabella não é padrão história da Carochinha. Está mais para Fellini.
Tem os descalabros das comédias tristes da Itália e dá a Eduardo Moscovis (na fina flor da maturidade) um visual de Mastroianni em "8 1/2" (1963). Há denúncias nele - em especial à violência contra as mulheres, em um par de sequências cruas e duras -, mas há mel também, numa crença de que o Cupido, um moleque dengoso, pode transformar um pinguinho de acaso num oceano de benquerer.
Amparado por uma trilha sonora à moda Nino Rota de Plínio Profeta, “Querido Mundo” é uma love story com risos inesperados. Há um signo onipresente na trama, escrita por Falabella, a partir do texto dele e de Maria Carmen Barbosa: ruínas. Há sucata, afetiva e física por todo lado. Já na arrancada, a queda de uma ponte, numa noite de tempestade (de tons expressionistas) une os mundos de Elsa (Malu Galli, em radiante atuação) e Oswaldo (Du Moscovis). Ela sonhava ser arqueóloga, mas não teve a chance de se formar, sob vetores brutais de um casamento infeliz. Ele é um engenheiro com erros de álgebra, aritmética e geometria em seu currículo de fracassos.
Numa noite de Ano Novo, eles acabam por trombar no Rio de Janeiro, nos escombros de um prédio abandonado por seus construtores.
Naquele "não-lugar", um esboço de romance vai nascer, entre tropeços e desabafos, mas é daqueles amores analgésicos, para os protagonistas e para a plateia, que vê Falabella iluminar o audiovisual, na tela grande, com sua crença no lirismo. Ele teve Hsu Chien como parceiro na construção de planos, como codiretor. A dupla fez Gramado provar de um tipo de cinema que já não se faz tanto, mas que a Itália fez aos montes, lá atrás. Um cinema que pede licença às imposturas do dia a dia, como um hiato, daqueles que encantam.
Gramado termina no dia 23.