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Nas graças do Cacá

Um dos docs. selecionados para Biarritz, 'Para Vigo me Voy' foca na trajetória do cineasta Cacá Diegues | Foto: Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Prometido para estrear até o Natal, apontado para outubro em algumas fontes e pra dezembro noutras, "Deus Ainda É Brasileiro" ganha um clima de antecipação no Festival de Gramado, ao ter registros inéditos de seus bastidores projetados no miolo de "Para Vigo Me Voy!", um dos quatro concorrentes ao Kikito de Melhor Longa Documental de 2025. A produção, que ocupa a telona da serra gaúcha nesta quarta-feira (19), fez sua estreia mundial na seção Classics do Festival de Cannes, em maio.

Na ocasião, arrebatou lágrimas de saudade pela perda de Cacá Diegues (1940-2025), que morreu em fevereiro. Há vários recortes de seu legado no documentário de Karen Harley e Lírio Ferreira, incluindo uma entrevista inflamável realizada no lançamento de "Quilombo", na França, em meados dos anos 1980. Há imagens dos sucessos que fizeram dele um artesão das narrativas cinematográficas, imortalizado com sua inclusão na Academia Brasileira de Letras (ABL), justificada por sua devoção à escrita, em crônicas.

Esse artista anfíbio, situado entre o cinema e a literatura é abordado em diferentes latitudes em "Para Vigo Me Voy!", que concorre aos prêmios gaúchos com "Lendo o Mundo" (RN), de Catherine Murphy e Iris de Oliveira; "Os Avós" (AM), de Ana Ligia Pimentel; e "Até Onde a Vista Alcança" (SP), de Alice Villela e Hidalgo Romero. Gramado já premiou Cacá no passado, em 2003, ao conferir a ele o troféu honorário Eduardo Abelin (láurea entregue na noite de segunda à produtora Mariza Leão). O evento ainda convocou-o para ser o presidente de honra do júri de 2017, quando "Como Nossos Pais", de Laís Bodanzky, fez uma festa na conquista de Kikitos.

Na lógica de Cacá, o ponto focal de um filme sempre é vetorizado pela vivência e pela urgência do seu povo. O "Deus Ainda É Brasileiro", que rodou em Alagoas, em 2022, traduz na edição o "perspectivismo de ação" sobre o qual o realizador escreveu muitas vezes na sua coluna no jornal O Globo. Ou seja, o personagem central parece, para alguns, ser o Altíssimo (vivido pelo ator Antonio Fagundes), e, para outros, as mulheres que lhe ensinam o que é resiliência na Terra. Cabe à plateia se agarrar à SUA verdade. Por isso, num reflexo desse instinto (ou saber) do Senhor, o delicado documentário "Para Vigo Me Voy!" abrace muitos Cacás e nos deixe livre para acompanhar aquele que escolhermos.

"Fiz um filme para entender que país a gente é hoje. No auge do governo Bolsonaro, nos dias de pandemia, só conseguia pensar que uma comédia poderia nos ajudar e fui pelo caminho do riso, pois ele nos ajuda a pensar", disse Cacá ao Correio da Manhã, nas filmagens, em Maceió. "Não se trata de uma comédia pura e simples, no sentido de fazer rir despropositadamente. Eu diria que este filme é uma comédia humanista, uma crónica do que está diante de nossos olhos e, ao mesmo tempo, que nos faz rir, nos indicando caminhos mais adequados nesse momento difícil da humanidade".

Em meio à Retomada, "Deus É Brasileiro" vendeu 1,6 milhão de ingressos em 2003 e voltou a incluir Cacá entre os fazedores de blockbuster deste país, posto que ocupou em 1976, quando "Xica da Silva" levou 3.183.582 pagantes às salas de exibição, e em 1980, quando "Bye Bye Brasil" vendeu 1.488.812 entradas, amparado numa indicação à Palma de Ouro de Cannes. A Croisette é evocada em "Para Vigo Me Voy!" numa fusão de arquivos de épocas diversas, do início dos anos 1950 ao fim dos anos 2010, com registos de uma festa na casa de Cacá, que nasceu em 19 de maio de 1940 e morreu em 14 de fevereiro deste ano. Na celebração, ele aparece ao lado da sua parceira de trabalho e de (43 anos) de vida, a produtora Renata Almeida Magalhães. Lá estão ainda atrizes, atores, cineastas e produtoras/es de peso para a criação de imagens no Brasil. Existe ainda em "Para Vigo Me Voy!" um núcleo ambientado nos sets de "Deus Ainda É Brasileiro". Logo no fluxo inicial, nesse ambiente de invenção, Cacá cai e é acudido. Essa sequência não entra como signo de fragilidade, nem como anúncio de finitude. É um signo do acaso, força que ele questionava, mas com respeito, em suas análises política. Na trama de seu esperado canto de cisne, Deus (Antonio Fagundes) não conta mais com seu guia, Taoca (papel de Wagner Moura). Ele regressa à Terra no dia do velório desse amigo, chegando ao planeta com o intuito de acabar com tudo, insatisfeito com os rumos da Humanidade. Passa até por uma reunião celestial para decidir o que será de nós. Ao matar as saudades de sua amiga Madá (Ivana Iza, atriz e documentarista de Alagoas que assume o papel outrora encarnado por Paloma Duarte) e conhecer a jovem Linda (Laila Vieira), o Criador começa a repensar seus afetos e o futuro da América Latina, tendo um político (Otávio Müller) no radar.

"Não acho que Deus seja tão divino assim, pois tenho a impressão de que ele é formado por partes de nós mesmos", disse Cacá ao Correio, enquanto finalizava o roteiro do seu longa de despedida. "No meu cinema, acho que ele vai representar sempre um direito a todas as possibilidades, num mundo de criação em que nenhuma é proibida".

Ao rever esse artista gigante, "Para Vigo Me Voy!" não é uma despedida. É um sinal de que Cacá é para sempre. Gramado também.