A boemia carioca encontra seu retrato mais autêntico no documentário "Moacyr Luz, o Embaixador Dessa Cidade", dirigido por Tarsilla Alves. O filme, que faz sua pré-estreia nesta terça-feira (19), às 19h30, no Cine Odeon, revela um mosaico afetivo sobre um dos compositores mais emblemáticos do samba contemporâneo, aquele que fez dos bares e esquinas da Cidade Maravilhos o palco de uma vida inteiramente dedicada à nossa canção popular.
Lançado no Festival do Rio do ano passado, o filme recebeu as seguintes palavras de Rodrigo Fonseca, o crítico de Cinema do Correio da Manhã: "No campo musical, “Moacyr Luz, o Embaixador Dessa Cidade”, de Tarsilla Alves, faz uma reflexão cartográfica sobre um Rio lírico que insiste em viver apesar de o Tempo tê-lo cancelado. As letras de Moacyr estão grávidas desse Rio, mas o filme vai além da placenta".
Carioca da gema, Moa é um nome incontornável no panorama da MPB e do samba em particular. Com sofisticação melódica e poética, pintou retratos autênticos do cotidiano carioca, da boemia, dos amores e das desilusões. Nas páginas seguintes, a realizadora fala ao Correio da Manhã da experiência de acompanhar o artista carismático, autor da icônica "Saudades da Guanabara", pela cidade de sua devoção.
Tarsilla Alves: 'Ele inventou um Rio que ele queria viver e que bom que podemos desfrutar dele'
Este é seu primeiro documentário musical? O que a atraiu para esse segmento?
TARSILLA ALVES - Como diretora e produtora executiva sim. Mas eu trabalhei em dois documentários musicais um sobre Dorival Caymmi e outro sobre Noel Rosa e recentemente um minidocumentário sobre o Cléber Augusto. Eu amo música, e o samba foi algo que meu pai me deu, ele sempre colocava eu e meus irmãos para ouvir no carro, Almir Guineto, Sombrinha, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Fundo de quintal, Candeia, sempre fomos para o carnaval, desfilamos no carnaval do Rio, sempre assistimos os desfiles das escolas, a música como um todo sempre foi muito presente na minha vida.
O quanto o roteiro do Hugo Sukman, um dos nossos mais respeitados jornalistas musicais, te auxiliou nessa missão?
Além do Hugo Sukman, temos também o Gabriel Meyohas como roteirista. Ele acabou de ganhar o prêmio Grande Otelo de melhor documentário por "Três Obás de Xangô" então a experiência do Hugo como esse grande jornalista, conhecedor da música brasileira e amigo do Moacyr Luz e do Aldir Blanc, nos ajudou a ter profundidade no assunto, entender todas as fases do Moacyr como melodista, letrista, compositor. Esse arco enorme que o Moa abrange que faz musica para Bethânia e para o Paraíso do Tuiuti. Hugo trouxe toda sua expertise e sabedoria da história da música brasileira, da música de novela também, da composição do Moacyr e da amizade do Moa com Aldir, e o Gabriel trouxe sua experiência de roteirista e sua sabedoria musical e essa atualização dos parceiros jovens do Moa, além do Gabriel ser músico e ter um grupo de samba... então eu estava muito bem acompanhada por esses dois grandes conhecedores e amantes da música brasileira. Eles embarcaram comigo nessa viagem e na ideia dos dias da semana e aí eles seguiram navegando e me entregaram um grande norte. Claro que documentário é um organismo vivo, as coisas mudam pela força da própria vida. Moacyr entrou num CTI depois da primeira diária no Pirajá, e com o taxímetro rodando e a equipe contratada nós fomos improvisando e mudando algumas coisas até ele poder voltar. E nesse momento formamos um grande time improvisando e pensando em novas cenas que não precisaríamos do Moa.
Como Moacyr reagiu à proposta do filme? Quanto tempo durou o processo de filmagem?
Eu liguei pro Moa para convidar ele a participar do filme da Joana Nin sobre o Noel Rosa e no meio do telefonema tive um estalo e falei "Moa vamos fazer um filme sobre você?, você é o cara, você fez tudo" e ele imediatamente topou e ficou super empolgado e ficamos conversando por dois dias quase que ininterruptamente, ele me mostrava composições que estava fazendo no momento e aí estávamos os dois super empolgados. E aí pensei, uau agora vou ter que fazer o filme do bichão. Nesse momento ele ganha a música do carnaval da mangueira e também lança um clipe no Fantástico para o Redentor 90 anos, música que a Luize Valadão pediu pra ele de encomenda a noite e ele entregou no dia seguinte. E pensei, uau ele tá num auge, será que ele vai topar mesmo? Moacyr é muito generoso com todos que se achegam a ele. Generoso e leal. Eu fiz uma filmagem ainda sem captação no Samba do Trabalhador e fiz outra quando Moa ganhou o carnaval da Mangueira em Fevereiro de 2022, mas com a captação nós filmamos algumas cenas em Janeiro de 2023 e depois embutacamos o mês de Abril. Então acredito que tenhamos filmado cinco semanas por aí… mas foi um filme bem rápido da captação a finalização durou um ano.
Você colheu depoimentos de artistas como Maria Bethânia, Zeca Pagodinho, Fafá de Belém... Algum deles te surpreendeu?
Na realidade todos me surpreenderam, em primeiro lugar porque todos adoram o Moacyr Luz, adoram mesmo, fazem reverência e tal, mas pela emoção com que eles falam da música do Moacyr, são três gênios emocionados falando da composição genialidade do Moa. Foram entrevistas, muito gostosas de fazer. Realmente emocionante.
Que Moacyr Luz habitava teu imaginário antes de todo esse processo? E que Moacyr sai dele?
O Moacyr do samba do trabalhador, o Moacyr do "Vitória da Ilusão", o Moacyr do Aldir e o Moacyr que comecei a conviver na laje do Augusto Martins que falava bobagens, fazia música e tomava um drink com os amigos. Eu saio do processo tendo a rara oportunidade de conviver com um gênio completamente generoso, um homem de afetos, um homem dedicado a família, completamente apaixonado pela Marluci, pelos sobrinhos e pelos amigos. Um Moacyr sacana piadista, que tá sempre soltando uma graça. Um Moacyr que faz uma música por dia. E é real, ele faz música quase todo dia, ele não consegue dormir se a inspiração bate. Além de tudo ele produz discos, escreve livro, é um assombro, ele não para. Aprendi muito com ele, sobre o processo de ser artista, sobre a porrada da vida, sobre o respeito que ele tem com a profissão e sobre os afetos. E eu ganhei um amigo, que me emociona, que acreditou em mim. E que adora uma resenha.
E como o Moacyr lidava com as câmeras? Mantinha a naturalidade ou ficava mais reservado?
Moacyr é o Marlon Brando brasileiro. Poderia fazer qualquer filme, é um ator nato. Estava sempre pronto para as câmeras, cabeça voando, inventando novas piadas durante o momento e se entregando as emoções que os encontros do filme proporcionaram. Às vezes ficava cansado e perguntava se aquilo era uma "ceita" (risadas). Mas ele foi maravilhoso conosco o tempo inteiro, jogou muito junto.
No filme Moacyr fala abertamente de sua atual condição de saúde, reflexo de anos de boêmia, um assunto delicado. Como ele encarou isso?
É o que ele mesmo diz no filme. "A música é muito solitária, se você não beber não aguenta" mas eu conheci um Moacyr Luz que só sai de dia, que encontra os amigos de dia e, à noite, ele vai pra casa. Então nosso filme é muito solar assim como o carioca é. A condição de saúde do Moacyr tem a ver com um diagnóstico de Parkinson há vinte anos atrás, ele tem vinte anos de Parkinson e sobe no palco e toca e para de tremer, é impressionante, um gigante. Ele é um gigante! Esses dias ele tocou "Coração do Agreste" e fez uma execução de excelência num solo que eu comecei a chorar, me emocionei, porque existem as variáveis da própria doença, tem dia que piora e tal. Então tem a boêmia claro que tem, ele quer morrer como uma cabra no Nordeste e aproveitar o que puder dessa vida, mas tem uma doença que é a grande vilã da sua condição de saúde. Eu tenho uma amiga médica que frequenta o Samba do Trabalhador e ela fala "ele tá ótimo" muito melhor que muito paciente meu mais novo e com Parkinson há menos tempo. Então deixa ele tomar o Aperol, fazer a música dele que é o que faz ele viver melhor.
Qual é o lugar de Moacyr Luz na história do samba contemporâneo, na sua visão?
Eu acho que Moacyr Luz trouxe tudo da tradição e toda sua monstruosidade em termos de composição e execução para o universo do samba. Ele tem como seu pai musical o Hélio Delmiro, então ele empresta esses arranjos, esses acordes ao samba e mistura com a juventude criando ali no Samba do Trabalhador um novo estilo, repleto de sambas autorais, das pandeiradas, das pessoas cantarem o arranjo que ele cria para voz. Moacyr traz toda sua maestria de composição, arranjo, melodia e entrega ao samba. Além disso compõe com os músicos jovens criando algo realmente novo. O samba do Trabalhador está aí e não nos deixa mentir, músicos talentosíssimos, lotando um samba toda segunda o Renascença Clube lá no Andaraí, com composições próprias que o público aprende ali e depois estoura. É maravilhoso, são as coisas que o Moacyr inventa. Ele inventou um Rio que ele queria viver e que bom que todos nós podemos desfrutar dele.
Como Moacyr reagiu ao ver o filme pronto? Ele se reconheceu no retrato que você fez dele?
Ele se reconheceu, mas demorou pra cair a ficha porque ele diz que se sente uma estátua andante, que não estaria vivo para ver um filme sobre si. Então cada vez que vemos o filme, bate algo novo, e nesse momento ele está muito feliz, está emocionado... e eu estou muito grata a ele por ter me deixado contar um pouco da sua história de uma maneira tão livre e tão ele, eu queria que as pessoas pudessem conhecer o Rio do Moa, esse jeito dele ver a vida, olhando o copo mais cheio. O filme é o Rio que ele inventou e o espectador tem a oportunidade de conhecer esse Rio e de sentar num bar e ser íntimo do Moa, algo muito além das belas canções do filme. Então dito tudo isso, acho que sim, acho que ele se vê bem claramente no filme.