Seja em Locarno, seja no Brasil, o português da cidade de Guimarães Rodrigo Areias já é de casa. Semana passada, o diretor e produtor lusitano - que foi um roqueiro da pesada na virada dos anos 1990 - botou o festival suíço no bolso com "NOVA '78", um documentário rodado em dupla com Aaron Brookner, feito em sinergia com a Inglaterra. Sua narrativa nevrtálgica resgata imagens (a maioria inéditas) da lendária Nova Convention, um evento de três dias, realizado na cidade de Nova York de 30 de novembro a 2 de dezembro de 1978, numa homenagem ao escritor beatnik William S. Burroughs (1914-1997). A "convenção" incluiu seminários, apresentações musicais, leituras, performances e ... confusão. Em meio à boa acolhida da fita na maratona helvética, Areias acompanha detalhes da estreia brasileira de "O Pior Homem de Londres".
No longa, em cartaz por aqui em setembro, voltamos à Londres da época vitoriana. Em terras inglesas, um homem de espírito aventureiro e grande argúcia apronta diabruras das mais variadas. Trata-se de Charles Augustus Howell, the Portugee. Nascido no Porto, filho de mãe portuguesa e pai inglês, ele é agente de grandes artistas e negociador de arte, mas também é agente secreto e mestre na chantagem. Arthur Conan Doyle fez dessa figura personagem das histórias do detective Sherlock Holmes e apelidou-o de "O Pior Homem De Londres". As peripécias de Howell (vivido por Albano Jerónimo) levaram Areias ao Festival de Roterdã.
Ambas as produções usam o espaço como instância de investigação de ausências e angústias existenciais, tema explorado por Areias no cultuado "1960", exibido no Cine PE, em 2014.
"O cinema como espaço de memória é uma constante no meu trabalho, quer seja como realizador, quer seja como produtor", explica Areias. "Quando faço um film noir ou um western, ou até um filme de época, como 'O Pior Homem de Londres', isso está patente. No caso específico do '1960', existia uma viagem cinematográfica em cima de um diário de bordo do arquitecto Fernando Távora e os seus escritos. Em 'NOVA '78', a voz é de William S. Burroughs, um dos grandes escritores e propulsores da Beat Generation. Ele é uma absoluta referência para mim, e para a geração retratada no filme, que por sua vez é ainda mais directamente uma influência cultural. Por exemplo, vemos no palco John Cage e Merce Cunningham ou Patti Smith ou Laurie Anderson, mas, no público, reconhecemos Thurston Moore dos Sonic Youth ou John Lurie dos Louge Lizzards, que por sua vez é o técnico de som deste arquivo".
Locarno ajudou a consagrar Areias como uma das grifes mais criativas da Península Ibérica nas experiências autorais do audiovisual. Grife que já soma quase 25 anos de inquietação e sucesso, somando em seu currículo uma invejável marca de 150 filmes executados ao longo de duas décadas e meia. Seu histórico atrás das câmeras inclui produções cultuadas como "Estrada de Palha", faroeste laureado pelo Júri Ecumênico nas telas tchecas do Festival de Karlovy Vary, em 2012, e "Hálito Azul", lançado no Brasil em 2020.
"Um festival como Locarno simboliza liberdade. É um festival de grande dimensão e projecção internacional que mantém um principio autoral e espaço para filmes mais radicais e mais fora do algoritmo que nos irá aprisionar a todos mais cedo ou mais tarde. É, por isso, um parceiro activo na luta contra a formatação a que o cinema está cada vez mais a ser sujeito", diz Areias, que em "NOVA '78" relembra um contratempo da Nova Convention.
Seus organizadores anunciaram a presença de Keith Richards, o que fez os ingressos se esgotarem num estalar de dedos, no entanto, o cancelamento de última hora do rolling stone causou oscilação no humor da plateia.
"O material do filme chegou até mim por parte do detentor do arquivo, Aaron Brookner, meu codiretor. Ele está a trabalhar os arquivos do seu tio Howard Brookner há mais de uma década, e eu conhecia parte deles. Em Janeiro de 2022, depois de acharem que não haveria mais nada para descobrir, surgem mais 40 rolos de película nunca antes vista", lembra o cineasta, que produziu o longa brasileiro "Cinco da Tarde" (2023), de Eduardo Nunes.
No posto de realizador, Areias está a acabar um novo documentário, rodado em Super-8, em torno de tradições orais da periferia europeia.
"Filmei na Islândia, Lapónia, Ucrânia (durante a guerra), Sardenha e Portugal", diz ele, que tem ainda uma ficção para rodar "É uma adaptação de dois contos de Gonçalo M. Tavares que terá Aki Kaurismaki como produtor associado".
Locarno termina neste sábado.